quinta-feira, 28 de junho de 2012

Diferença entre judaísmo e cristianismo

Texto interessante de um Rabino Judeu, muito respeitoso para com o cristianismo, mostrando que a principal diferença entre o judaísmo e o cristianismo não é basicamente a crença em Jesus ser ou não o messias, mas os dogmas que separam as duas crenças.

Outro ponto interessante é que no ínicio do cristianismo, ambas religiões eram mais próximas e a história comprova isso. O texto na íntegra:

Dada a tradicional pergunta "afinal vocês acreditam ou não em Jesus Cristo?", a resposta mais inteligente que eu já escutei foi esta:"nós judeus acreditamos que o Messias virá. Vocês cristãos acreditam que ele já veio, mas voltará. Portanto, numa coisa nós concordamos - ainda vem alguém pela frente. Alguém ainda está para vir. Muito simples! Basta aguardar o Messias e, quando ele chegar, perguntamos se essa é a primeira ou a segunda vez que ele aparece por aqui...".

Se Jesus é ou não o messias não é a pergunta mais importante que divide o Judaísmo do Cristianismo. A grande questão que difere os dois sistemas religiosos é a ênfase que cada um dá para fé e ações. De acordo com o Judaísmo, D'us considera as ações das pessoas muito mais importantes do que sua fé. "Melhor que (os judeus) Me abandonem, mas sigam as Minhas leis" (Talmud Y. Hagiggah 1:7). Agir de acordo com os princípios éticos e morais judaicos é a obrigação central dos judeus. O Cristianismo, por outro lado, à medida que foi se desenvolvendo, deixou de lado a quase totalidade das leis e transformou a fé no seu ponto central.

No início as diferenças eram praticamente insignificantes. O próprio Jesus afirmou que "não imaginem que eu vim para abolir a lei dos profetas (...) quem infringir a lei será o último para ir ao reino do céu" (Mateus 5:17). Com o passar do tempo, a derrota para os romanos em 70 e.c. e a influência dos apóstolos, notadamente Paulo, a lei foi sendo abandonada. Com o advento do protestantismo, os sacramentos católicos foram eliminados, mas não a valorização exclusiva da fé. Lutero escreveu que "a fé por si mesma, sem os sacramentos, justifica, liberta e salva". Esse processo teve um efeito cataclísmico no distanciamento entre nós e os cristãos.

Existem três dogmas que derivam dessa diferença fundamental. Para os cristãos, acreditar nesses dogmas é necessário para resolver alguns problemas que seriam insolúveis caso os dogmas não existissem. Trata-se do "Pecado Original", da "Segunda Vinda" e do "Perdão através da morte de Jesus". Ah, nenhum destes dogmas estão na Torá.  Para os judeus, esses dogmas não são necessários porque esses problemas nunca existiram. E de fato não existe, igual  "judaísmo messiânico". O Cristianismo estabelece que todas as pessoas nascem pecadoras, estando nessa condição de forma hereditária. Paulo escreveu que "o pecado veio através de um homem e através de outro homem que ele será removido" (ética IX). Assim, apenas o batismo, e nada mais, tem o poder de salvar o ser humano. Seria uma espécie de antídoto universal para o pecado que nasce com cada pessoa, desde os tempos imemoriais. Para o Judaísmo, "Pecado Original" não é problema. A noção de que as pessoas nascem pecadoras não é judaica, procure na Torá! Não tem... Cada pessoa nasce inocente e cabe a elas tomar as suas próprias decisões morais e escolher se ela quer ou não pecar, isto tem um nome, se chama livre arbítrio e responsabilidade.

Outro problema Cristão é o fato das profecias messiânicas não terem se concretizado quando da vinda de Jesus. Como pode Jesus ser o messias se nenhuma das principais profecias se tornou realidade? "Nação não levantará a espada contra nação, nem aprenderão mais a guerra" (Isaias 2:1). Não é preciso ser um especialista em história para saber que, nesses vinte séculos de era cristã, isso não se concretizou.

obs. Opinião não compartilhada pelo autor do blog

A solução oferecida pelo Cristianismo é o conceito da "Segunda Vinda" de Jesus, quando finalmente a era messiânica chegará. Para os judeus, esse conceito não é aceitável porque a Torá nunca mencionou uma segunda vinda do Messias.

Além desses elementos, existe o problema de que as pessoas não podem obter salvação através de suas ações. Para resolver isso, desenvolveu-se o dogma da fé em Jesus como única forma de salvação. Nessa solução, como foi observado acima, o Cristianismo difere profundamente do Judaísmo. Quais pecados a morte de Jesus estaria removendo dos ombros da humanidade? Como a Torá afirma que apenas o povo judeu pode ser cobrado pelas obrigações homem-D'us, então a morte de Jesus só poderia estar perdoando a humanidade pelos pecados homem-homem. Essa doutrina se opõe diretamente ao Judaísmo e sua noção de culpabilidade. De acordo com o Judaísmo, nem mesmo D'us pode nos perdoar pelos crimes cometidos contra outros seres humanos. Apenas a pessoa atingida tem o poder de nos perdoar, sabia disto?

Por fim, existe a diferença fundamental em termos da atitude para com os agressores. "Não ofereça ao mal nenhuma resistência. Pelo contrário, se alguém te bater na face direita, ofereça a ele a esquerda também" (Mateus 5:38) e "Ame os seus inimigos e reze pelos teus perseguidores" (Mateus 5:44). O Judaísmo, por outro lado, exige que os agressores sejam poderosamente resistidos. A Torá cita o exemplo de Moises, quando mata o capataz egípcio que batia em um escravo judeu. Do judeu é exigido tratar seus inimigos com justiça, mas não existe nenhuma indicação nas fontes de que um judeu deve amar seus inimigos. Nenhum judeu é obrigado a amar um nazista, por exemplo, como poderia sugerir a declaração de Mateus.

Apesar das muitas diferenças entre nós e os cristãos, essas diferenças não devem em hipótese alguma ser obstáculo para um excelente relacionamento entre as comunidades. Os dois sistemas religiosos compartilham valores e objetivos bastante similares. Ambos querem um mundo mais ético e humano e as pessoas religiosas das duas comunidades devem se ajudar nesse intento. No entanto, em uma época em que movimentos missionários cristãos das mais variadas estirpes lançam campanhas de conversão de judeus, é importante conhecer as diferenças entre nós e os cristãos para termos claras as linhas vermelhas que separam cada religião.

Artigo baseado nas obras de Dennis Prager e Joseph Telushkin. Tradução e colaboração de Selma Bias Fortes.
fonte: Judeus.org

Shalom!

terça-feira, 26 de junho de 2012

A história da bíblia (Antigo testamento)


A Bíblia não é como muitos pensam um livro só, constando na realidade de numerosos livros, escritos em diversas épocas por vários autores. Já pelo seu nome, percebe-se o que significa: os livros (de biblia, plural de biblion, diminutivo do grego biblos, o livro). Fundamentalmente, ela se divide em: Velho Testamento ou coleção de livros escritos antes de Jesus; e Novo Testamento, composto dos livros que apareceram com o Cristianismo.Os livros reconhecidos como sagrados, como inspirados diretamente por Deus, constituem o cânon do Velho e do Novo Testamento.

A primitiva literatura do povo hebreu era composta de cânticos, a forma pela qual esse povo, no principio nômade e pastoril, reverenciava seu Deus e transmitia seus feitos à posteridade.

Ao se compulsar a Bíblia, encontram-se esses cânticos esparsos em diversos pontos do Velho Testamento: Canção de José (Gén. XLIX); Canção de Moisés (Êxodo XV); Canção de Moisés (Deuteronômio XXXII e XXXIII); Canção de Débora (Juízes V); e outros (Números XXI, 14, 15, 27 a 30; 1 Samuel, II, 1 a 11; II Samuel, XXII; II Reis, 21 a 35), canções estas anteriores às narrativas de que fazem parte.

Com a fixação do povo hebreu na Palestina, foram se formando os livros que deveriam compor o seu livro sagrado. Mas, devido às continuas guerras e às muitas vicissitudes pelas quais passou o povo, os documentos originais perderam-se ou foram destruídos para não caírem em mãos inimigas.

Os escribas e doutores da lei eram forçados, então, a reconstituir, de memória ou com os escritos fragmentários, os primitivos livros. O cativeiro da Babilônia, em 586 a.C., foi de enorme significação, porque dividiu o povo hebreu, destroçou toda sua organização e provocou a perda de todos os manuscritos sagrados até então existentes.

Coube a Estiras, no ano 458 a.C., reconstituí-los. Não está bem esclarecido se ele achou cópias escondidas ou se foi o próprio autor de todos os livros, inclusive o Pentateuco ou Torá, que muitos atribuem a Moisés.

Com efeito, segundo um manuscrito apócrifo considerado não canônico ou não fidedigno encontrado no ano 96 d.C. e denominado Livro VI de Esdras (Cap. XIV 37 48), tendo sido os documentos primitivos destruídos pelo fogo, Esdras os recompôs por inspiração divina. Ditou, então, em 40 dias, a 5 escribas, 94 livros, dos quais 24 constituíam o antigo cânon dos hebreus e os restantes 70, tidos depois como apócrifos, continham ensinamentos esotéricos.

Conforme se vê, a literatura religiosa hebraica consolidou-se ou reafirmou-se depois do cativeiro da Babilônia, o que é confirmado pela presença, até no Pentateuco, de trechos que reproduzem mitos caldeus.

Assim, os fragmentos do sacerdote babilônico Berósio (III a.C.) e milhares de documentos cuneiformes relatam que os homens foram criados da argila, mas que, por sua impiedade, foram afogados por um dilúvio do qual só escapou Utnapixtim, o Noé babilônico, que construiu uma arca e nela se encerrou com os seus. Após 7 dias, a arca parou numa montanha e Utnapixtim solta uma pomba e depois uma andorinha, que voltam, por não encontrarem onde pousar. Depois solta um corvo, que não volta. Utnapixtim sai, então, da arca e oferece um sacrifício aos deuses.

Sargão, filho de pai desconhecido, é abandonado em um cesto de caniço no Eufrates, por sua mãe, e depois encontrado por um camponês. Mais tarde torna se o senhor do país.

Os exegetas discutem sobre o verdadeiro autor ou autores dos livros do Velho Testamento. Com efeito, encontram se em muitos livros sinais evidentes de que foram escritos por mais de um autor, não só pela coexistência de relatos diferentes, como também de estilos dessemelhantes. Assim, por exemplo, no Gênesis conta-se a criação de Adão e Eva de duas maneiras (versão jeovista e versão eloísta).

Assinalam-se, mesmo, quatro autores no Gênesis. O autor "J", assim chamado porque empregava a denominação Jeová para Deus, era do sul da Palestina e seus escritos parecem remontar a 1000 ou 900 anos a.C. Já o autor "E", que atribuia a Deus o nome Elohim, era do norte e deve ter escrito mais ou menos pela mesma época. O terceiro autor parece ter sido um profeta de Judá, que viveu em aproximadamente 722 a.C., chamado de "JE" porque juntou trechos de "J" e de "E" e adicionou outras narrativas. E, finalmente, há trechos mais recentes que constituem a versão "P", que devem ter sido obra de um corpo sacerdotal, após a destruição do templo.

Uns atribuem o Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) a Moisés, outros, a Esdras e outros, a diversos autores. A análise dos manuscritos é delicada, porque muitos são freqüentemente discordantes, não havendo nenhum manuscrito original, pois todos se perderam, bem como as cópias de cópias mais antigas.

Assim, o Deuteronômio (o livro 5 do Pentateuco) foi encontrado somente no ano 622 a.C., no reinado de Josias ou de Manassés. Mesmo que tivesse sido atribuído a Moisés, é estranho que o capítulo XXXIV relate sua morte e seu enterramento. Deuteronômio significa recapitulação da lei, ou a lei 2, fazendo ver que é uma reprodução ou atualização da antiga lei mosaica.

O Levítico (3° livro do Pentateuco) parece ter sido posterior ao exílio e a Ezequiel, depois do ano 358 a.C.

Os outros livros do Velho Testamento (Provérbios, Cânticos, Salmos) estavam completos pelo 4° ou 3° século a.C.

Os livros de Esdras e de Neemias foram obra de um só compilador e apareceram pelo ano 300 a.C.

Os livros dos Profetas (completos entre 250 e 200 a.C.) e os Hagiógrafa (completo entre 150 e 140 a.C.) parecem não ter sido feitos por Esdras.

Todos esses livros foram escritos originalmente em hebraico , com alguns trechos em aramaico (Daniel II, 4 a VII, 28; Esdras IV, 8 a VI, 18 e VII, 12 26; Jeremias X,11).

No Velho Testamento existem outros livros, muito mais recentes, escritos originalmente em grego e não em hebraico. Não foram, por isto, reconhecidos pelos hebreus ortodoxos como canônicos (sagrados, inspirados por Deus).

Os católicos incluem-nos em sua Bíblia, mas os protestantes repelem-nos. São os chamados deuterocanônicos, em número de 7: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico (não confundir com o Eclesiastes), Baruc com a Epístola de Jeremias, os dois livros dos Macabeus. Há também trechos deuterocanônicos no livro de Ester (X, 4 até XVI, 24, inclusive) e no Daniel (111, 2490; XIII, XIV).

Os livros canônicos dos hebreus ortodoxos eram em número de 24, assim divididos:

1 Torá, a Lei (O Pentateuco, dos gregos). São os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio.

2 Nebhiím, os Profetas. Em número de 8, cujos primeiros: Josué, Juizes, Samuel, Reis (4 livros) e últimos:
a) Maiores Isaias, Jeremias, Ezequiel (3 livros);
b) Menores: os 12 profetas menores, enfeixados em um único livro.

3 Kêthubim, ou Hagiógrafa. Escritos sagrados em número de 8, sendo:
Poéticos: Salmos, Provérbios, (em número de 3);
Megilloths ou rolos: Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester (em número de 5).

4 Restantes, em número de 3: Daniel, Esdras com Neemias, Crônicas.

O Canon hebráico era contado ora com 24, ora com 22 livros (por causa das letras do alfabeto). Orígenes e São Jerônimo procuraram subdividir os livros de forma a darem um total de 27, para coincidir o número com mais cinco letras finais do alfabeto hebraico.

Modernamente conhecemos esses livros divididos em 39, pela distribuição do livro dos 12 profetas menores em 12 livros, pela separação do livro de Neemias, do de Esdras e pela subdivisão dos livros de Samuel, Reis e Crônicas, cada um em dois livros.Toda a dificuldade na exegese bíblica está em que os manuscritos originais, inclusive os de Esdras, perderam-se.

Não existe nenhum manuscrito bíblico anterior ao século IV d.C. Convém ter em mente que, antes da invenção da imprensa, em fins do século XV, a Bíblia só existia sob forma de manuscrito. Ora, as cópias e cópias de cópias tiveram que passar pela compilação e pela reconstituição dos copistas.

Além de se tratar de manuscritos, sujeitos a desgaste, de leitura e reprodução difíceis, expostos a omissões, alterações, interpolações e até a falsificações, havia a extrema dificuldade de interpretação e tradução do hebráico.

Com efeito, os manuscritos hebraicos formavam um todo contínuo, sem capítulos e sem versículos. Somente no ano 1228, o cardeal Langton teve a idéia de subdividir a Bíblia (ainda manuscrita) em capítulos. E foi o editor Robert Stephen quem estabeleceu a divisão em versículos, no ano 1555.

Outra dificuldade enorme e insuperável naquele tempo é que a língua hebraica era composta apenas de consoantes e não havia pontuação. Além disto, não havia dicionário ou gramática, enfim, nada que orientasse a interpretação ou a significação de palavras ou frases. Em suma, o manuscrito hebraico era uma sucessão interminável de consoantes, sem pontuação, sem parágrafos, sem versículos, etc.

Assim, Yhvhthstsrcdmndknntm significa "Yaveh, tu procuraste-me e conheceste-me". Imagine-se o que não seria o trabalho de cópia e interpretação de um livro assim constituído!

A transmissão da versão tradicional se fazia à custa da memória extraordinariamente cultivada e desenvolvida dos doutores da lei, mesmo assim, exposta a interpretações ou intromissões indevidas no texto exato.

O cânon hebraico, tal como o conhecemos hoje, já existia no século II a.C. Por esta época, os hebreus, embora concentrados na Palestina, estavam espalhados pelo resto do mundo. Muitos, fugindo à rígida tradição ortodoxa, foram admitindo alguns preceitos dos gentios e mostravam-se muito liberais em matéria de religião. Eram os chamados hebreus helenizantes.

Por isto mesmo e pelo fato de a língua grega ser a língua internacional no século II a.C., Ptolomeu Filadelfo pediu aos hebreus de Alexandria que lhe fizessem a tradução grega dos livros religiosos hebraicos.

O sumo sacerdote Eleazar forneceu os documentos hebraicos e, segundo uma tradição meio histórica e meio lendária, reuniram-se 72 eruditos, seis de cada tribo de Israel, para fazerem aquele trabalho. Entre outras lendas, conta-se que terminaram todos a sua tarefa no mesmo momento, com um altissonante Amém e que foram tiradas 70 cópias da tradução.

Esta, à qual os hebreus helenizantes de Alexandria acrescentaram os deuterocanônicos, escritos em grego, é a famosa Septuaginta, ou Versão dos 70. Esta obra foi de grande significação, pois até essa época a leitura dos livros religiosos hebraicos estava reservada ao templo e às sinagogas. A partir daí, difundiu-se o conhecimento da Bíblia entre os não hebreus e mesmo entre os descendentes de Israel que, longe de sua pátria, estavam mais familiarizados com o grego do que com o hebraico . Entretanto, os hebreus ortodoxos repeliram-na, tanto mais que encontraram infidelidades na dificílima tradução.

Assim, diz Salomon Reinach que os 70 traduziram, em Isaías VII, 14, o hebraico "almah", por "virgem", quando a tradução exata seria"moça" ("pois por isso mesmo o Senhor vos dará este sinal: uma virgem conceberá e dará a luz a um filho e seu nome será Emanuel"). Pode-se avaliar a importância de tal mudança de tradução dessa frase profética, de profunda significação para o futuro cristianismo.

Aliás, erros desta natureza poderiam-se dar com relativa frequência e facilidade. Assim, por exemplo, a simples transposição de um sinal podia modificar todo o sentido de uma frase. Em Gênesis XLIX, 21, conforme a pontuação, pode se ler: "Neftali é um veado solto, que pronuncia formosas palavras", ou: "Neftali é uma árvore frondosa da qual brotam formosos ramos". Na tradução dos 70, foi a primeira frase a que prevaleceu.

Os originais e cópias da Septuaginta perderam-se. Hoje, conhecem-se perto de 4 mil manuscritos, dos quais os mais antigos remontam ao século IV d.C.

Os mais importantes e antigos são os conhecidos pelos nomes de: Manuscrito do Vaticano (Século IV d.C.); Manuscrito Sinaitico, de Tischendorf (Século IV d.C.); Manuscrito Alexandrino (Século V d.C.).

Os hebreus, não conformes com a tradução grega da Septuaginta, continuaram a transmitir os manuscritos do Templo. Mas os exegetas ortodoxos reconheciam, pelas dificuldades já expostas de tradução e de interpretação do texto hebraico, que era necessário compor um sistema de sinais que fizessem o papel das vogais e da acentuação e assim permitissem maior fidelidade ao verdadeiro texto.

No tempo de Jesus havia dois textos: o texto grego da Septuaginta e o texto hebraico ortodoxo, proveniente do texto primitivo de Esdras.

Parece que o texto hebraico era seguido por Jesus e seus apóstolos, enquanto São Paulo e os gentios conversos, que logo se tornaram dominantes, adotavam o texto da Septuaginta pelo fato de a língua grega ser mais difundida e acessível.

Os hebreus ortodoxos empreenderam o trabalho de sinalização dos manuscritos, que passaram a ser chamados textos ou manuscritos massoréticos, do nome massora (tradição).

Apesar de tantas precauções, afirmam os exegetas que, até o século II d. C., esses manuscritos sofreram, fora de qualquer dúvida, numerosas corrupções, o que se inferiu pela comparação com outros documentos antigos.

Somente pelo século IV é que se fixou a versão massorética, conhecida presentemente. Como os demais documentos, o texto hebráico massorético e suas cópias mais antigas perderam-se. O manuscrito massorético mais antigo hoje existente é o denominado Codex Babylonicus Petropolitantis, que data do ano 910.

Além da versão dos 70, há outras traduções gregas do texto hebraico: traduções de Áquila, de Teodósio e de Simaco, que datam do século II d.C. Embora não tivessem atingido à preeminência daquela, servem para estudo comparativo.

Na versão da Septuaginta existiam alguns livros que não foram reconhecidos canônicos: os livros III e IV dos macabeus, o Salmo CLI.

Circulavam também, nos primeiros tempos do Cristianismo, manuscritos religiosos que não foram incluídos na lista dos documentos canônicos: os livros III e IV de Esdras, o livro dos Jubileus, os Paralipômenos de Jeremias, o livro do martírio de Isaías, o livro de Enoc, etc.

Em resumo, o Velho Testamento é conhecido através de cópias, cujas mais antigas datam de muitos anos depois de Cristo, sendo umas gregas (provindas dos textos de Septuaginta) e outras hebraicas (provindas dos textos massoréticos). Não se conhecem cópias sem sinalização, derivadas do texto hebraico de Esdras.

Posteriormente, apareceram os textos latinos e outros que veremos adiante.

No texto grego da Septuaginta, o Cânon do Velho Testamento é dividido em 4 seções:

1 A Tora, a lei, ou seja, o Pentateuco, com os 5 primeiros livros. Modernamente, tende se a acrescentar a estes, o livro de Josué e a denominar o conjunto de Hexateuco.

2 Os livros históricos, de Josué até Crônicas, e mais outros, como Esdras, Neemias, Ester.

3 Os livros poéticos: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos cânticos,

4 Os livros Proféticos dos 4 Maiores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os dos 12 Menores.

O nome Velho Testamento vem do grego Palaiediatheké (palaie: velho, diatheké: pacto, aliança). Essa a denominação grega pela qual era mais conhecida em Alexandria, a Versão dos Setenta.

Mas diatheké também significa testamento e foi o nome preferentemente adotado por São Jerônimo, na versão da Vulgata, e o que prevaleceu até hoje.

Neste capítulo referimo-nos à antigüidade dos documentos bíblicos comumente conhecidos. Em 1947 foram descobertos às margens do Mar Morto rolos bíblicos que datam de antes de Cristo. Estes manuscritos bíblicos, em hebraico, grego, árabe e aramaico, são todos do Velho Testamento e ainda estão sendo objeto de estudos.

Há um palimpsesto em papiro, com uma lista de nomes e números em hebraico arcaico, chamado fenício, que data de cerca de 500 a 600 a.C. e é, provavelmente, o documento mais antigo do mundo. Muitos manuscritos estão sendo decifrados por meio da fotografia pela luz infravermelha.

Não há dúvidas sobre a autenticidade e antigüidade desses documentos, cujo estudo poderá, talvez, provocar a revisão de muitos conceitos em torno da literatura do Velho Testamento.

fonte: O portal do infinito

terça-feira, 19 de junho de 2012

A teoria do intervalo

A Teoria do Intervalo em Daniel 9:27

O conhecido comentarista romano Hipólito, do séc. III confundiu os dois príncipes de Dan. 9:24-27,
concluindo que os dois eram um só, interpretando "Ele" do v. 27, como sendo um futuro Anticristo, e não Jesus Cristo que haveria de cessar os sacrifícios. 

É lamentável que o erro de Hipólito tenha sido copiado por John N. Darby, no século XIX, 
introduzindo o conceito de que a vinda de Cristo consiste de duas fases, o que capturou o pensamento de muitos protestantes de hoje. Uma fase é o arrebatamento secreto dos cristãos, seguido do Seu aparecimento em glória e majestade, 7 anos depois, para governar a Terra por mil anos. 
Certamente, ele está baseado na "Teoria do Intervalo", que separa a última semana de Dan. 9:27,
em uma lacuna de mais de 2000 anos, após a qual virá o Anticristo que fará uma aliança com os judeus, mas quebra esta aliança na metade da semana de 7 anos. ]

O que ensina a Bíblia sobre isto? Há "13 categóricos nãos!" que justificam a não-aceitação da "Teoria do Intervalo". 

1) Não é bíblica. 
Não há a mínima sugestão na Bíblia de que devemos colocar um intervalo no final do período das 69 semanas de Dan. 9:27. Não há um só paralelo em toda a Bíblia de semelhante acréscimo, em um período profético que foi dado em sua perfeição completa para ser interrompido. A profecia Bíblica é a exposição que segue criteriosamente o seu contexto mediato e imediato, considerando a harmonia entre as partes e sua interpretação natural. 

Mas como isso não acontece com a teoria do intervalo, ela pode ser uma interpretação humana, uma tentativa de encontrar a verdade na falta de mais sabedoria, mas não é bíblica. A teoria do hiato coloca a figura do Anticristo dentro desta profecia, para o futuro, o que não consta em nenhum texto, nem nesta parte, nem em qualquer outra parte das Escrituras, para confirmar essa conexão extra-bíblica. 
Não há um "Assim diz o Senhor" para autorizar a adição de um intervalo em Dan. 9:27.

2) Não é perfeita.
A teoria do intervalo desfaz a perfeição profética tanto do período, como dos acontecimentos relacionados.
O número 70 é formado de 7 x 10; o número 7 indica a perfeição do período  (como na própria semana de 7 dias); o número 10 indica a perfeição do governo e da vontade divina  (como visto nos 10 mandamentos). Dan. 9:24 expõe o período, colocando o limite próprio, além de definir claramente o propósito sêxtuplo, acrescido do 7º propósito no verso 27, que descreve o acontecimento que seria exato em sua perfeição para dar o sentido mais bíblico e exato, na morte do Messias. Isto tudo deve se cumprir dentro das 70 semanas. Ora,separar a última semana, uma única, de 69 outras semanas é tornar imperfeito um período perfeito, de 70 semanas, e frustrar o acontecimento mais perfeito que foi o sacrifício do Messias na Cruz do Calvário, que deve culminar com a metade da semana dos 7 anos restantes,no ano de 31 d.C. 
É por esse perfeito sacrifício que Jesus Cristo comunica a perfeição à Sua Igreja (Heb. 10:14).

A teoria do intervalo retira essa perfeição profética, colocando sobre os ombros do Anticristo uma obra que não lhe foi atribuída, mas foi atribuida a Cristo. Portanto, não é perfeito separar um período perfeito, cujos propósitos se ajustam e se cumprem com exatidão.


3) Não é necessária.
Os advogados da teoria do intervalo afirmam que se não houver uma lacuna entre as 69 semanas e a 70ª,
se o período for contínuo, não haveria mais nada a dizer-se sobre o futuro. Dizem que esse hiato é necessário para que tenhamos uma visão do futuro. 

Entretanto, esta necessidade não existe, porque a profecia das 70 semanas não foi dada para o mundo em geral, mas para o povo judeu: 


"Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo e sobre a tua santa cidade." (Dan. 9:24),

delimitando a Teocracia de Israel para apenas mais 490 anos daquela parte do tempo do profeta, e no final desse tempo, não haveria mais chance para uma nação que rejeitaria o Messias de Deus dizendo: "O Seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos". (Mat. 27:25).

Ademais, esta profecia é uma ampliação do capítulo 8:14, para explicar a primeira parte e o ponto de partida da profecia dos 2300 anos (Dan. 8:26-27; 9:21-22). Mas, falando desta visão disse o anjo: "... esta visão se refere ao tempo do fim" e "há de acontecer no último tempo da ira, porque esta visão se refere ao tempo determinado do fim."  (Dan.8:17,19,26). 

Ora, se esses intérpretes da profecia estão procurando um período que se estenda até o "tempo do fim",
devem então procurar no capítulo anterior, em Dan. 8, porque este, sim, é claro em afirmar a verdade sobre o fim dos séculos.

Mas como esses teólogos liberais sustentam a doutrina extra-bíblica do Dispensacionalismo, que ensina a conversão futura da nação israelita ao verdadeiro Messias, e a separação de judeus e gentios, se vêem na necessidade de criar um intervalo para adaptar a profecia às suas crenças preconcebidas. 

Entretanto, a Bíblia ensina claramente o fim da Teocracia judaica no próprio texto estudado, onde o profeta Daniel expõe o tempo de graça para Israel:  "Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo e sobre a tua santa cidade." (Dan. 9:24). 

Cristo confirmou esta interpretação, quando diante dos líderes judeus falou: "Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos." (Mat. 21:43). 

Logo depois, Ele chorou  ao contemplar a cidade condenada, dizendo que o seu tempo de graça estava expirando, ao afirmar: "Eis que a vossa casa vos ficará deserta." (Mat. 23: 37-38). 

O Espírito Santo estaria fora de qualquer templo que fosse reedificado após a destruição do seu santuário,
predito por Daniel (9:26) e também profetizado pelo grande Profeta e Mestre (Mat. 24:1-2).
Acabou-se a Economia judaica, cumpriu-se a profecia de Dan. 9:26-27. Após isto, o evangelho foi pregado para os gentios que também deveriam ter a sua oportunidade. 

Mas ainda assim, lá estavam os judeus atrapalhando a pregação que era dirigida aos gentios. Pelo que disse o apóstolo Paulo: "a ponto de nos impedirem de falar aos gentios para que estes sejam salvos, a fim de irem enchendo sempre a medida de seus pecados. A ira, porém, sobreveio contra eles (contra os judeus – v. 14-15), definitivamente." (1Tes. 2:16). 

Portanto,não é necessário um intervalo para nos indicar o futuro, porque as profecias relativas ao tempo do fim se encontram explanadas nos capítulos escatológicos de Dan. 2, 7, 8, e 11-12.

4) Não é cronológica. 
A teoria de que tratamos segue a cronologia profética até o seu final, percorrendo as 69 semanas, mas quando abandona a seqüência para adicionar um hiato perde a cronologia exigida pelo próprio texto que se pretende explicar. 

É de se admirar que as duas primeiras partes (7 semanas e 62 semanas) seguem o padrão cronológico
sugerido pelo texto, mas que logo ao chegar à terceira unidade (1 semana), sem nenhum motivo para isso, o autor da teoria abandona a cronologia, para se satisfazer em criar um intervalo, inadmissível em qualquer estudo sério de escatologia.

Toda escatologia sem cronologia evidente por si mesma e pelo texto estudado sofre do perigo de ser considerada uma falsa teoria e perigosa interpretação, da qual muitos vão depender até o seu modo de vida, como acontece nesse caso, em que muitos estão acomodados, julgando que tudo já está resolvido para o seu futuro, e que nada mais tem a fazer a não ser continuar em sua fé pelo que Cristo já fez na Cruz. 
O resultado é um preparo frouxo e acomodado.

"É somente mediante uma ginástica hermenêutica e uma suspensão da razão que um intervalo imenso pode ser importado para Daniel, a fim de interromper o período de tempo de outra forma cronologicamente exato." (Dr. K.L.Gentry Jr., As 70 Semanas de Daniel).

Portanto, é grave toda interpretação escatológica que não se preocupa com a cronologia, mas muito mais grave quando essa cronologia  é claramente indicada pelo texto profético estudado, como base e fundamento da verdade.

5) Não é natural. 
Espera-se de uma interpretação profética que seja natural e espontânea, seguindo-se as mínimas regras de interpretação, que parta a sua exposição do próprio texto, conforme a indicação do mesmo. Mas se há um acréscimo de alguma coisa estranha ao texto, que não tenha um relacionamento natural e comum das partes entre si, é uma falsa interpretação, que precisa ser reestudado, sem isenção. 


O apóstolo Pedro advertiu à igreja primitiva: "Tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles." (2Ped. 3:15-16). Uma interpretação profética jamais deveria ser torcida, deturpada, ou forçada, em seu significado original para que seja natural em sua compreensão.

6) Não é exegética.
O ensino da teoria do hiato se perde por sua falta de exegese séria do texto bíblico. Para se fazer uma exegese, são necessários alguns elementos indispensáveis, como: estudo das línguas originais, estudo do contexto mediato e imediato, gramática, estrutura literária do texto, bem como o tipo de literatura apresentada, para citar algumas ferramentas. 

Mas,para não nos alongarmos demasiadamente, vamos considerar apenas o tipo de literatura que foi usada. Muitas vezes, a poesia hebraica é um recurso usado nos escritos proféticos, dando beleza e força de expressão. Na poesia, logo nos deparamos com o método dos paralelismos: sinônimos, sintéticos, antitético, alternativos e quiasmas. 

A estrutura literária poética de Dan. 9:24-27 possui sinônimos, antíteses, e quiasmas (linhas em X, "qui" – do grego), além do jogo de palavras [como a palavra "cortar" que no original tem a mesma raiz das palavras traduzidas por "valados", "determinadas" e "decretada"]. 

Mas o grande auxílio da poesia neste caso são os contrastes que nos ajudam a identificar o sujeito "Ele" do v. 27. O grande problema por que muitos não podem ver a Cristo é a identificação do sujeito "Ele" com o Anticristo futuro. Mas tudo se esclarece se podemos ver dois príncipes em luta e em frisante contraste:

v. 26 : 
1) será morto o Ungido, (Príncipe no v. 25: morte ao 1º Príncipe)
e já não estará ("não estará" na destruição que segue logo abaixo)

2) e o povo de um príncipe que há de vir ("estarão" para destruir:) destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será num dilúvio, (morte ao 2º príncipe: o destruidor é destruído.) e até ao fim haverá guerra; desolações são determinadas.


v. 27: 
1)" Ele fará firme aliança com muitos, (Retorna ao 1º Príncipe)por uma semana; na metade da semana, fará cessar o sacrifício e a oferta de manjares; 

2)" sobre ... abominações virá o assolador, (Retorna ao 2º príncipe)até que a destruição, que está determinada, se derrame sobre ele.

É evidente o contraste dos dois príncipes em luta. A ordem é esta:
1) Primeiramente, destaca-Se o Messias, que morre.
2) Logo após, vem o destruidor, que também morre.

1)" A seguir, Gabriel retorna com o 1º Príncipe, Cristo que constrói.
2)" Logo, vem o assolador que é destruído.

As linhas 1) e 2) estão em paralelo, mas em contraste.
A mesma estrutura se vê nas linhas 1)" e 2)": estão em paralelo, mas em contraste.
Entretanto, as linhas 1) e 1)" estão em harmonia, como também as linhas 2) e 2)".

Esta é a estrutura poética e profética dos versos 26-27. A identificação desta forma poética ajudará a identificar os personagens, e trará a verdadeira interpretação dos termos. 

A conclusão é clara: o maior personagem é enfatizado como sendo o Messias e Sua obra redentora.
O anjo Gabriel não estava tão preocupado com o inimigo, mas com o perigo de rejeitar o Messias,
porque isso traria o destruidor da própria nação e do templo. Essa seria a sorte do povo judeu, embora havia um escape para os arrependidos. A identificação também virá com a resposta à palavra-chave destruição". 

Quem é o assolador, quem é que destrói? É evidente que no verso 27, o assolador é apresentado como o segundo personagem, após o Cristo identificado como o "Ele" do início do verso. A teologia identifica o fato de que Cristo (Ele) ao morrer na Cruz, não só (1) cessa os sacrifícios, como também (2) triunfa sobre o assolador e seus aliados, mencionados na segunda parte do verso. 

O apóstolo Paulo disse:  "[1] tendo cancelado o escrito de dívida, ... que constava de ordenanças, ...
removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz; e, [2] despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz." (Col. 2:14-15). 

Comentando a teoria do parêntesis ou intervalo, diz o teólogo Gentry:
"Esse argumento ignora as peculiaridades do estilo poético hebraico. A mente oriental frequentemente confunde a preocupação ocidental com uma sucessão cronológica; a estrutura ocidental não pode ser inserida na passagem. Esse "padrão revelacional" permite uma repetição paralela e expansão do assunto, sem exigir uma sucessão real no tempo." (Dr. K.L.Gentry Jr., As 70 Semanas de Daniel). 

E mais: "Essas propostas futuristas repousam, essencialmente, sobre uma compreensão errônea dos padrões de pensamento da poesia hebraica... elas representam uma leitura do idioma hebraico através de óculos ocidentais". (Frank Holbook, Symposium on Revelation - Book 1, pág. 327). "

7) Não é climática. 
O modo de colocação dos termos da profecia, a ordem dos temas, a seqüência das divisões do período,
e a explicação do anjo levam ao pontomais climático que é a realização de todo o período das 70 semanas com o seu ponto climático na última semana. 

O clímax é esperado na profecia imediatamente na sua parte final. O texto não sugere um anticlímax, como a teoria do intervalo quer impor, dogmaticamente. O texto sugere fortemente um momento culminante, e tem uma tendência para o seu final imediato. Nada de um hiato distanciando a parte mais esperada da profecia para um povo que aguardava ansiosamente o Messias, na plenitude dos tempos.

8) Não é cristocêntrica.
A teoria do intervalo ignora que a principal Figura apresentada em Dan.9:27 seja o Messias, sendo a Sua morte e rejeição do Crucificado pelos judeus a própria razão da destruição de Jerusalém: "Porque estes dias são de vingança, para se cumprir tudo o que está escrito." (Luc. 21: 22; Ver Mat. 24:15). 

O período começa com vários objetivos que tratam do pecado e sua vitória esmagadora. Mas se as partes em que o período é dividido são importantes, apontam, no entanto, para a parte superimportante, que é o seu final cristocêntrico: a obra de Jesus Cristo para cumprir os 7 objetivos na sua morte como o Messias. 

Esta é a parte mais importante, porque é o acontecimento sobre o qual gravitam todas as verdades da Bíblia. Esta profecia bíblica encontra o seu cumprimento máximo na Pessoa de Cristo, que morreu na metade da semana, realizando a sua obra salvífica para a humanidade.

A teoria do intervalo falha em não reconhecer essa verdade cristocêntrica, para dar lugar ao Anticristo e, portanto, perde-se no intuito de apresentar um futuro personagem estranho à profecia, e deixa de visualizar a mensagem cristocêntrica do "Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (João 1:29).

9) Não é proporcional.
Um período de 383 anos, seguido por outro período de 7 anos, um período quase terminado num total de 490 anos, mas interrompido abruptamente para além de 2000 anos é algo simplesmente desproporcional. De novo, retirar 1 simples semana de 70 semanas e lançá-la inadequadamente para um futuro indefinido de mais de 2000 anos, sem nenhuma certeza de seu cumprimento, é completamente desproporcional e descabido.

10) Não é segura.
A teoria do hiato não é uma interpretação segura porque não encontra nenhum apoio contextual. Não está segura no contexto imediato, nem no contexto mediato. Não se baseia em nenhuma segurança próxima ou distante. Não tem nenhum "Assim diz o Senhor" para certificar a certeza de sua pretensão. E não é sábio se aventurar numa interpretação insegura, vacilante e comprometedora. 

A grande falácia da doutrina do intervalo é que promove insegurança espiritual à Igreja que ficando confusa sobre o tempo de sua tribulação, recebe a promessa de que no tempo do Anticristo ela será retirada da Terra pelo Arrebatamento Secreto, mas peca ao se deparar com muitos textos que indicam claramente que a Igreja passaria pela tribulação e seria provada nela, tendo experimentado a fúria de Satanás e do Anticristo. (Dan. 12:1; Apoc. 7:14; 12:17; 13:15-17). 

11) Não é lógica.
O pensamento de um possível intervalo dentro de um período profético criteriosamente estabelecido na Escritura não é lógico. As lógica exige uma proposição e as provas que a estabelecem. A proposição do profeta Daniel se encontra no v. 24 (Dan. 9:24); as provas seguem através da divisão do período em 7 + 62 + 1, resultando em 70. Não é lógico separar a última semana, que é uma das três unidades que complementam e exatificam o número 70, com todas as explanações do anjo assistente Gabriel, que se deu ao trabalho de unir as partes ligadas pelos números e acontecimentos correlatos. 

A coisa mais lógica que se espera de um período profético é que ele tenha um início e um fim,
como é o caso dos períodos de 1260, 2300, 1290, 1335 anos (Dan. 7:25; 8:14; 9:24; 12:7, 11, 12; Apo. 11:2,3; 12:6,14; 13:5) – todos eles contínuos, sem nenhum intervalo entre eles, como é também o caso de 70 semanas que também são uma unidade inseparável e contínua (Dan. 9:24). Se não fosse assim, não haveria por que procurar exatidão profética. 

É lógico que a 70ª semana se refira aos 7 anos seguintes à 69ª, isto é, ao período em que o ministério do Messias tomou o lugar. As palavras do texto em nenhuma forma indicam uma quebra ou intervalo. 
Ora, sair da lógica mais simples, é errar na interpretação e violentar o texto, fazendo-o dizer o que a profecia não diz.

12) Não é coerente.
A teoria do hiato, da descontinuidade do período profético de Dan. 9:27, não é coerente com o próprio ensino da profecia. O Anticristo não pode realizar a obra estipulada como sendo os 7 acontecimentos e propósitos do v. 24 e 27: 


(1) "para fazer cessar a transgressão",
(2) "para dar fim aos pecados",
(3) "para expiar a iniqüidade",
(4) "para trazer a justiça eterna",
(5) "para selar a visão e a profecia",
(6) "para ungir o Santo dos Santos", e
(7) "cessar o sacrifício e a oferta de manjares".

Tudo isso é Obra exclusiva do Messias e tudo isso pertence ao propósito final das 70 semanas:

(1) É Cristo que trata com o pecado de modo a extirpá-lo: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!" (João 1:29).


"...agora, ... ao se cumprirem os tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar,
pelo sacrifício de si mesmo, o pecado."


(2) É Cristo quem traz a justiça eterna: "A Tua justiça é justiça eterna" (Sal. 119:142). 
"Justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem" (Rom. 3:22).

(3) É Cristo quem sela a profecia: "O tempo [Dan. 9:24-27] está cumprido, e o reino de Deus está próximo;
arrependei-vos e crede no evangelho." (Marc. 1:15).

(4) É Cristo quem unge o Santo dos Santos: "Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacerdote, que se assentou à destra do trono da Majestade nos céus, como ministro do Santuário [celestial]" (Heb. 8:1). "...pelo Seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção." (Heb. 9:12).

(5) É Cristo quem faz cessar a lei cerimonial,os sacrifícios e as ofertas de manjares: "E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito. Eis que o véu do santuário [terrestre] se rasgou em duas partes de alto a baixo" (Mat. 27:50-51). 
"Aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças" (Efé. 2:15).
"Tendo cancelado o escrito de dívida, ... que constava de ordenanças, ... removeu-o inteiramente,
encravando-o na cruz." (Col. 2:14).

(6) É Cristo quem faz uma "firme aliança",tão firme que é eterna:
"Farei com eles aliança eterna" (Jer. 32:40).
"Porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos,
para remissão de pecados." (Mat. 26:28).
A idéia do original hebraico é "confirmar a aliança", que evidentemente já existia,por ser eterna;
não tanto fazer uma aliança ainda inexistente.

(7) É Cristo quem deu esta profecia e a interpretou:
"Quando, pois, virdes o abominável da desolação de que falou o profeta Daniel [9:27],
no lugar santo (quem lê entenda),então, os que estiverem na Judéia fujam para os montes."
(Mat. 24:15-16).
"Quando, porém, virdes Jerusalém sitiada de exércitos, sabei que está próxima a sua devastação...
Porque estes dias são de vingança, para se cumprir tudo o que está escrito...
Cairão a fio de espada e serão levados cativos para todas as nações." (Luc. 21:20, 22, 24).

É evidente que Cristo interpretava Dan. 9:27, predizendo a destruição da cidade de Jerusalém no ano 70 d.C. pelos romanos, considerados por Ele como "o abominável da desolação".

Introduzir o futuro Anticristo nesse meio é colocar um corpo estranho para a realização dos santos propósitos divinos; Seria fazer o texto dizer o que não tem a intenção de dizer. Seria forçá-lo à incoerência.

Faltaria espaço para considerar em maior profundidade outra grande incoerência sobre a metade da semana
(Dan. 9:27), que todos concordam ser de 3 ½ anos: Como podem os teólogos da teoria do intervalo tomar o período de Dan. 7:25 (Dan. 12:7; Apo. 11:2,3; 12:6,14; 13:5), que descreve um período profético de 1260 dias-anos e usá-los como 3 ½ anos para se adaptarem à metade da última semana em Dan. 9:27? 

(1) Se o princípio dia-ano (Núm. 14:34; Eze. 4:6-7, 1 dia = 1 ano) foi usado para chegarem aos 490 anos (70 semanas x 7dias = 490 dias), então, pelo menos por amor à coerência, 1260 dias também devem ser 1260 anos. 

Por que as 70 semanas são interpretados como tempo profético e os 1260 dias não são? 

Mas, se forem entendidos como devem ser, tempo profético de dias-anos, como poderiam caber 1260 anos dentro de 1 semana de 7 anos, para ser a metade da semana?  

(2) Ademais, onde estão os períodos de 1290 e 1335 dias-anos (Dan. 12:11-12)
que se encontram próximos cronologicamente dos 1260? (Dan. 12:7: 3 ½ tempos = 1260 dias).

(3) E ademais ainda, onde estão os diferentes contextos dessas profecias relacionadas aos 1260 dias?

Conseqüentemente, desfaz-se o período de 3 ½ anos, baseados em 7 textos extemporâneos, e está desfeita a teoria do intervalo. Simples-mente, não há coerência. 

Portanto, a teoria do intervalo não é coerente com o ensino bíblico geral nem com o ensino particular do anjo Gabriel de Dan. 9:24-27, que interpreta esse período como sendo um período completo, terminado, acabado.

13) Não é conservadora.
Há um grande número de teólogos conservadores que interpretam o período das 70 semanas como sendo
uma unidade completa e inseparável. Aqueles que aceitam a interpretação que conecta a 70ª semana com o Messias e não com o Anticristo incluem os seguintes eruditos:  

1- Pais da Igreja primitiva: Tertullian, Eusebius, Athanasius, Cyril de Jerusalém, Polychronius, e Augustine.
2- Escritores cristãos medievais: O Venerável Bede, Thomas Aquinas, and Arnold de Villanova.
3- Líderes da Pré-Reforma:  Wycliffe e Brute, junto com tais reformadores como  Luthero, Melanchthon,
Funck, Selnecker, Nigrinus, e Heinrich Bullinger.
4- Eruditos da Pós-Reforma: Joseph Mede, Sir Isaac Newton, William Whiston, Johann Bengel,
Humphrey Prideaux, John Blair, e James Ferguson.
5- Exegetas do Mundo Antigo do Século IXX: Jean de la Flechere, William Hales, George Faber,
Thomas Scott, Adam Clarke, Thomas Horne, Archibald Mason, John Brown, John Fry,
Thomas White, Edward Cooper, Thomas Keyworth, Alfred Addis, William Pym, Daniel Wilson,
Alexander Keith, Matthew Habershon, Edward Bickersteth, e Louis Gaussen, como também o último Havernick, Hengstenberg, e Pusey.
6- Expositores Americanos do Séc. IXX: Elias Boudinot, William Davis, Moderador Joshua Wilson,
Samuel McCorkle, Robert Reid, Alexander Campbell, Jose de Rozas (Mexico), Adam Burwell (Canadá),
Robert Scott, Stephen Tyng, Isaac Hinton, Richard Shimeall, James Shannon, e John Robinson.
7- Expositores do Século XX: C.H.Wright, R. D. Wilson, Boutflower,
e outros muito numerosos para serem mencionados.

shalom!

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Afinal, o que são demônios (Por Padre Quevedo)


AFINAL, O QUE SÃO DEMÔNIOS ?
Pe. Oscar G. Quevedo S.J.

Padre Quevedo
     Pressuposto. A respeito de demonologia, secularmente usou-se a Bíblia como principal argumentação, quase exclusiva. Ora, é tema teológico ou é tema científico? Pertence à ciência o estudo das realidades observáveis do nosso mundo. E deduzíveis da observação (filosofia). A Bíblia é um livro de doutrina sobrenatural, inobservável, revelada. E da Bíblia podem deduzir-se outras verdades (Teologia). Não há direito a invocar a Bíblia em ciência, como a ciência não pode discutir Doutrina sobrenatural. A Igreja Católica e Denominações Protestantes, o Islã, as seitas religiosas, como tais, não têm a última palavra em ciência, nem sequer a primeira. E o conjunto dos ramos da ciência que estuda fatos incomuns, relacionados com o homem, é a Parapsicologia. Teologia e ciência tratam de temas diferentes (Falo inclusive como doutor em Teologia).

          Isto pressuposto, em demonologia de que se trata? É Doutrina sobrenatural, inobservável, revelada, ou trata-se de cultura e interpretação de fatos do nosso mundo? Naquele pressuposto muito, muito, muitíssimo deveríamos insistir para evitar tantos erros acumulados em demonologia..., por culpa de teólogos, padres, pastores, etc., inclusive santos e pretendidas revelações particulares (tema também muito importante que amplamente deveremos analisar em outra oportunidade).

          DEMÔNIO. Hoje sob o termo geral demonologia tem-se embutido uma amálgama completamente heterogênea, misturando ou identificando conceitos na realidade totalmente incompatíveis.

         Antigo Testamento. Uma primeira constatação é que o termo demônio (ou um eqüivalente hebraico para traduzir exatamente o termo grego daimónion e daimónia (ou daímon e daímones) tão freqüente, como veremos, no Novo Testamento apesar de ser tão curto, não aparece nunca nos originais do Antigo Testamento apesar de ser tão comprido. A palavra demônio no Antigo Testamento é só fruto de traduções posteriores.

      Ídolos. Os sátiros (espécie mitológica de bode), "seres peludos" descritos por Isaías, inspirado nas divindades mesopotâmicas, são convertidos na tradução oficial, (chamado de Setenta), em demônios. Dançariam com sereias nas ruínas da Babilônia (Is 13,21).Também em outras oportunidades os ídolos são traduzidos por demônios (Isaías 65,3; Dt 32,17; Sl 106,36ss).E quando Isaías (65,11) fala de Gad, o deus arameu da fortuna, os Setenta substituem Gad por demônio. Esses mesmos sátiros, esses mesmos ídolos, esses mesmos demônios, no Levítico são, na tradução dos Setenta, simplesmente "coisas vãs"! (Lv 17,7). Coisas: Não existem como seres pessoais. Vãs: vazias, inúteis...

           Soberania de Deus. Na sua pedagogia, a Bíblia não enfrentou diretamente desde o início os deuses estrangeiros. Utilizou-os, como instrumento de linguagem, para destacar a soberania de Deus. Apresentou-os como subordinados a Jahweh, o Deus dos deuses e das potestades. Aos deuses pagãos chamou-os "Filhos de Deus", que formavam o conselho de Deus, "Potestades" que ajudavam no governo do universo. E inclusive os organizou hierarquicamente (Dn 10,13) -como em toda milícia bem-estabelecida- sob o comandante supremo, Satã (Zc 3,1-2). Mas a manifesta semelhança com a mitologia pagã poderia induzir o povo judeu ao politeísmo. Aparecem então os Profetas lembrando que só há um Deus.

           Os profetas tiram da mitologia e cultura da época todo traço de politeísmo, mas guardam os aspectos compatíveis com o único Deus, Criador e Supremo Governante. Os deuses pagãos, as Potestades e outras criaturas celestes servem para destacar a grandeza do Criador.Este empréstimo de elementos das religiões pagãs é evidente em várias oportunidades. Por exemplo, no Levítico. O velho costume popular de expiação é aproveitado purificando-o da idolatria: "Quanto ao bode sobre o qual caiu a sorte 'para Azazel', será colocado vivo diante de Jahweh, para fazer com ele o rito de expiação, a fim de ser enviado a Azazel, no deserto... Aarão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode e confessará sobre ele todas as faltas dos filhos de Israel, todas as suas transgressões e todos os seus pecados (...) e o bode levará sobre si todas as faltas deles para uma região desolada" (Lv 16,10,21s).

          O bode não é sacrificado ao demônio Azazel. A ação simbólica de transferir os pecados se faz diante de Jahweh pela mediação do sacerdote Aarão, e o "bode expiatório" indo ao deserto, onde morrerá, simboliza a desaparição dos pecados. Inexistentes. Mais ainda, Israel logo compreende que Deus não precisa de conselho nem ajuda de ninguém e que os deuses pagãos não passam de absurdas falsidades enquanto não se identifiquem com o próprio Deus único.Se não são o próprio Jahweh, essas divindades são falsas, inexistentes. O Salmo 96,5 diz no original hebraico que os deuses dos pagãos são vãos: deuses = élohim, vãos = élilim. Não pode o grego conservar este jogo de palavras. E os Setenta convertem vãos em demônios! Os demônios são vãos, inexistentes.

No Novo Testamento se recolhe a idéia: São João identifica os deuses pagãos com os demônios, e são seres inertes, meras imagens feitas pelas mãos dos homens: "Obras das suas mãos, para não mais adorar aos demônios, os ídolos de ouro, de prata, de bronze, de pedra e de madeira, que não podem ver, nem ouvir ou andar" (Ap 9,20).

E São Paulo também identifica deuses pagãos e demônios, e igualmente como vãos, nada, inexistentes: "Aquilo que os gentios imolam, eles o imolam aos demônios (...). Que quero dizer com isto? (...) Que os ídolos (os demônios) mesmos sejam alguma coisa? Não!" (1Cor 10,19-20).

Influencias pagãs. A antiquíssima demonologia-divindades da literatura suméria, os perniciosos deuses-demônios chamados udug, e a demonologia acádia influenciaram os hebreus do Antigo Testamento, e através dos caldeus penetraram o mundo grego e depois o romano.

Pouco antes de Cristo, a influência volta aos judeus, através da cultura grega, resultante da dominação romana. Dois séculos antes de Cristo e no próprio século 1º d.C., a demonologia judaica manifesta reflexos da demonologia mesopotâmica e grego-romana.

Demônios e demônio são as traduções vernáculas para os termos daímones no plural e daímon no singular na versão dos Setenta. Tenhamos em conta que esta tradução foi feita precisamente nesta época neo-testamentária. Ora, na literatura grega e na época helenística, daímon e daímones significam deus e deuses: divindades de grau inferior.

Os judeus na época neo-testamentária, também adotaram esta denominação. Flávio Josefo, o historiador judeu que escrevia no século primeiro, várias vezes emprega o termo daímones como sinônimo de deuses. Levemos em conta que o todo o Novo Testamento foi escrito em grego.O termo daímon procede de daiomai, que significa distribuir: eram os deuses que distribuíam os bens e os castigos aos homens.

Neste mesmo sentido, os pagãos usam o termo daímones com referência à pregação de São Paulo: "Dir-se-ia um pregador de divindades (daímones) exóticas, porque ele anunciava Jesus e a Ressurreição" At 17,18). Os que escutavam Paulo usaram o termo daímones no plural porque acreditavam que Jesus era anunciado como um deus  e a Ressurreição como uma deusa.

Elaboração do animismo. Zoroastro ou Zaratustra, o mais antigo fundador conhecido de religião, ensina que Alhura Mazda, o Deus Supremo, serve-se dos  chamados "santos imortais":  são divindades inferiores, pois são concebidas como irradiações da natureza divina. Alhura Mazda não governa diretamente o mundo, serve-se para isso dos imortais, potestades ou daímones.

Na mais antiga mentalidade todas as manifestações da natureza, que o homem primitivo considerava superiores a ele, eram concebidas como dotadas de alma. Esses seres animados, espíritos bons ou maus, eram os responsáveis pelos acontecimentos favoráveis ou desfavoráveis.

Com o tempo, o animismo dos povos primitivos foi se fazendo mais elaborado e complexo. É substituído por potestades, ou divindades inferiores, que como intermediários governam a humanidade e o mundo. Os próprios intermediários - divindades inferiores-, se multiplicam numa subordinação hierárquica mais ou menos extensa.

Elaborado ou primitivo conserva-se o animismo nas tradições de muitos povos africanos. De lá se ramificou principalmente pelos chamados cultos afro-brasileiros e de vários países latino-americanos.O judaísmo num começo não se opôs ao animismo, mas o disciplinou, a fim de acomodá-lo às suas próprias exigências doutrinais. Por exemplo, o animismo universal considerava que os rios e os vaus tinham alma. Depois, pensou que havia neles um deus. Eram daímones. Para atravessar um rio, primeiro era preciso aplacá-lo com oferendas e dádivas.

Lê-se na Bíblia: Jacó "se levantou, tomou suas duas mulheres, suas duas servas, seus onze filhos e passou o vau do Jaboc. Ele os tomou e os fez passar a torrente e fez passar também tudo o que possuía. E Jacó ficou só"Mas não aplacara o deus torrente! Teria portanto de ser castigado: "E alguém lutou com ele até surgir a aurora. Vendo que não o dominava, tocou-lhe na articulação da coxa, e a coxa de Jacó se deslocou enquanto lutava com ele".

Com a aurora vem um daímon mais poderoso, que afugenta as divindades noturnas. Para isso, o deus da torrente disse: "Deixa-me ir, pois já rompeu o dia". Mas Jacó respondeu: "Eu não te deixarei se não me abençoares".Faz parte também do animismo universal atribuir força mágica aos nomes. O Gênesis acomoda tal crença, fazendo intervir a Divina Providência nos nomes:

"Ele lhe perguntou: 'Qual é teu nome?' -'Jacó', respondeu. Ele retomou: 'Não te chamarás mais Jacó, mas Israel (Deus forte, ou algum significado eqüivalente), porque foste forte contra Deus e contra os homens, e tu prevaleceste'. Jacó fez esta pergunta: 'Revela-me teu nome, por favor'. Mas ele respondeu: 'Por que perguntas pelo meu nome?' E ali mesmo o abençoou. Jacó deu a este lugar o nome de Fanuel 'porque -disse- eu vi Deus face a face'" (Gn 32,23-33).

A demonologia de Israel consta de elementos emprestados de todas as civilizações vizinhas. Tais culturas não pertencem ao conteúdo da Revelação! Trata-se de interpretação pagã de realidades do nosso mundo. Pertence à ciência. A Bíblia não é um livro de ciencia. Os elementos da natureza não são deuses. Estes daímones não existem. Só metaforicamente se substituem, ou identificam, esses demônios pelo verdadeiro e único Deus.

           Novo Testamento. Sob diversos nomes alude 73 vezes ao que comumente hoje se chama demônio. O Novo Testamento usa, além de daimónion, os nomes: "Diabo e seus anjos" (Mt 25,41), "espíritos imundos" (Mt 10,1), "espírito impuro" (Mc 1,23), etc.

Demônio e os outros termos se usam indistintamente. No singular ou no plural. Assim, por exemplo, a mesma pessoa que, segundo Marcos (5,2), é possuída por um espírito impuro, no singular, pouco depois no mesmo Marcos (v. 13) está possuída por espíritos imundos, no plural. E segundo Lucas (8,27) essa mesma pessoa está possuída por demônios, no plural; mas imediatamente, no mesmo Evangelho de Lucas (v. 29) Jesus identifica esses demônios como um espírito impuro, no singular; e no versículo seguinte (30), Lucas diz que são muitos demônios

No apóstolo São Paulo. Paulo usa a linguagem e as imagens próprias da cultura judaica da sua época. Os "espíritos do astral" e outros demônios-divindades, originariamente do Oriente, foram convertidos pelos judeus em "armadas celestes" (Sabaoth). Jahweh é o Deus dos Sabaoth, Deus dos exércitos, ou em diversas passagens da  tradução dos Setenta, "Deus das Potestades" (cf. por exemplo, Sl 80,5).

Paulo, pela sua cultura judaica, utilizou como comparação o mito de que Deus delegou o governo do mundo às Potestades e Principados (Gl 3,19; Hb 2,2; 1Cor 6,3 etc.) São os demônios. "O nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do mal, que povoam as regiões celestiais" (Ef 6,11-12).

As Potestades ou demônios estão a serviço de Deus; são dignos de respeito (1Cor 11,10) e obediência (talvez também Rm 13,1-6); são os instrumentos de uma correção salutar por meio de doenças (1Cor 5,5); o próprio Paulo é deixado a Satã (2Cor 12,7); serão julgados (1 Cor 6,3) e podem ser castigados se não cumpriram bem a sua função. Em todo caso os demônios culpáveis terão de reconhecer o senhorio universal de Cristo (Fl 2,10-11; Cl 1,15-20;  Ef 3,10; Cl 2,15).

Paralelamente à mentalidade mítica judaica, que concebia os lugares áridos como morada preferida dos baixos demônios, aparecem em Paulo as altas potestades habituando as camadas mais altas da atmosfera: "Príncipe do poder do ar" (Ef 2,2); "Espíritos do mal que povoam as regiões celestiais" (Ef 6,12). Tudo influencia os primeiros cristãos. Se os povos orientais influenciaram muito nos judeus e, em seqüência, em São Paulo, influíram mais ainda na demonologia dos primeiros cristãos.

São Justino, São Clemente de Alexandria etc. refletem claramente a mentalidade demonológica dos egípcios. Orígenes, no começo do século III, teve uma influência decisiva na demonologia cristã que lamentavelmente permanece até hoje.

Os demônios maus. O daímon, demônio, divindade inferior, vai deixar de ser um intermediário entre Deus e as criaturas, para o bem ou para o mal, e converte-se num ser unicamente mau. Para São Paulo, apostatar da fé é eqüivalente a escutar os ensinamentos dos demônios-deuses pagãos (1 Tm 4,1);  a idolatria eqüivale a misturar-se com demônios-ídolos, que sustentam o paganismo (1 Cor 10,20ss). E assim passou-se a considerar os demônios como seres maus e desprezíveis, nada semelhantes a potestades que colaboram com Deus.

Isso já aparece nos últimos escritos do Novo Testamento: "Caiu, caiu Babilônia, a Grande, tornou-se moradia de demônios, abrigo de todo tipo de espíritos impuros, abrigo de todo tipo de aves impuras e repelentes" (Ap 18,2); "Nisto vi que da boca do Dragão (... ) saíram três espíritos impuros, como sapos" (Ap 16,13).

Gradualmente o abismo entre divindades e demônios foi-se alargando. O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã só vêem hoje nos demônios forças inimigas de Deus e dos homens.

OUTROS NOMES NA BÍBLIA 

            A SERPENTE. A primeira vez que  um demônio apareceria na Bíblia seria a Serpente do Paraíso.

Uma resposta da Pontifícia Comissão Bíblica, em 30 de junho de 1909, declarava ser uma verdade inseparável dos fundamentos da fé cristã que o pecado de Adão foi por persuasão do Diabo sob aparência de serpente ("Diabolo sub serpentis specie suasore"). Isto estaria afirmado pelo Livro da Sabedoria e pelo Novo Testamento!

          Esta resposta da Comissão tinha valor normativo. Meramente. Mas assim a interpretação comum passou a ser que a Serpente representa Satã. A Serpente tentadora que aparece em Gn 3, poderá aplicar-se, por elucubrações de teólogos, a qualquer conceito de demônio. Elucubrações. Na realidade, no episódio da tentação de Adão e Eva, nada se diz sobre o nome, natureza ou origem do tentador. O texto não oferece o menor motivo para identificar a Serpente) com Satanás, ou qualquer outra espécie de demônios.

           O que importa é ver o que a ciência descobriu a respeito. A identificação serpente-Satã "apoia-se" numa tardia interpretação judaica que penetrou e se manteve até nossos dias entre os cristãos. De modo algum responde aos princípios da interpretação histórico-científica. Na linguagem figurada na narração do pecado original, a Serpente não é símbolo ou imagem do Tentador, mas da tentação. Esta acontece no coração do homem, embora dado o estilo simbolizante da narração, foi exteriorizada. O narrador atribui à Serpente a função de tentadora, devido à proverbial astúcia deste animal.

           Na literatura religiosa da Índia há uma lenda com traços marcadamente semelhantes à do Gênesis. O homem vivia só. Inicialmente feliz e  sem preocupações. Uma deusa, uma divindade, daímon, chamada Mara, apresentou a mulher ao homem. Mara incita ao prazer sexual. Considera-se o sexo como algo pecaminoso,.tabu. Só depois de conhecer sexualmente a mulher é que o homem descobre a solidão...
A lenda indiana apresenta um demônio tentador. Os melhores interpretes indianos suprimem o tentador.

           A lenda indiana é um pouco anterior ao século VI a, C., quando se escreveu o capítulo sexto do Gênesis. O Gênesis purifica a lenda, mas é evidente a influência indiana no ambiente judaico. Era a mentalidade de todo Oriente. A Serpente no Gênesis significa o próprio instinto sexual. Tentação sexual sem tentador. A serpente não passa de representação, personificação ou símbolo precisamente sexual.

           Lamentavelmente essa interpretação sexual do pecado do Paraíso não é a mais comum entre os teólogos cristãos. Foi o belga Coppens, com conhecimentos científicos, isto é, parapsicológicos, o primeiro teólogo católico moderno que interpretou a serpente como símbolo sexual. Depois muitos exegetas católicos concordaram com Coppens: à luz da ciencia, à luz da pesquisa histórica, a descrição bíblica pretendia condenar os cultos cananeus da fertilidade.

           Em toda a descrição do pecado no Paraíso respira-se uma atmosfera sexual. Adão e Eva teriam feito uma espécie de culto da deusa, daímos, Fertilidade, culto  conhecido sem dúvida pelo autor sagrado porque muito praticado pelos pagãos da época. Tem fundamento muito valioso na antigüidade judaica a interpretação sexual da Serpente.

           Filon de Alexandria, contemporâneo de Cristo, e que teve grande influência nos primeiros escritores cristãos, foi o principal defensor da teoria alegórica. A Serpente é considerada como mera imagem dos desejos e prazeres sexuais. Não é Satã nem nenhum outro tipo de demônio; é a hedoné, sensualidade humana. A serpente é arquétipo no inconsciente do homem, simbolizando em todas as épocas e povos a vida, a eterna juventude e  especialmente, a fecundidade e libido. Os teólogos deveriam levar em conta esta descoberta da Psicologia Profunda.

            A serpente também poderia representar a idolatria, pois representa os deuses pagãos dos povos vizinhos de Israel. Muitos israelitas, traindo sua religião, chegaram a adorar a serpente como uma divindade que podia levá-los à salvação. Evidentemente a teoria "ídolo" e a teoria "sexo" se identificam. A Serpente era adorada nos cultos da fertilidade precisamente por ser deusa do sexo e dos prazeres sexuais.

            Em todo caso, o Paraíso terrestre não pode ser tomado no sentido literal histórico. Todo o conjunto referente a Adão e Eva:  a quem pertence diretamente o tema? De que se trata? O aspecto origem da vida humana no nosso mundo perceptível pertence à ciência. A ciência diz que os primeiros homens certamente não foram super-homens vivendo num paraíso de delícias, senão possivelmente a coroação evolutiva dos primatas: Pithecanthopus Erectus, Homo de Java, de Neanderthal, de Cro-magnon etc. Os primeiro homens certamente viviam nas cavernas quase como animais. E ponto final. Não pertence ao teólogo como tal opinar nem contra nem a favor sobre o fato histórico, científico... Ao teólogo corresponde reconhecer o ditame da ciência. Como aceita o teólogo-cientista moderno Wildiers, "a evolução histórica da humanidade, tal como nós a conhecemos, não oferece nenhum resquício para a figura de Adão, tal como a tinha bosquejado a teologia secular".

            Aliás, não é de hoje que se considera o capítulo 3 do Gênesis como transcrevendo não uma história senão uma parábola educativa. Uma parábola para ensinar um ponto de vista explicativo do problema do mal. Neste outro aspecto, o doutrinal, o teólogo procurará unicamente o sentido religioso que se encerra nas expressões bíblicas em questão. Não se pode argumentar em favor da atividade de Satã ou demônios com um fato que não aconteceu.

            Inseparável dos fundamentos da fé cristã? A Pontifícia Comissão Bíblica afirma que no Livro da Sabedoria e no Novo Testamento se define que a Serpente do Paraíso é Satã. Vejamos. Comecemos pelo Novo Testamento. O Apocalipse (12,9 e 20,2) identifica "o  grande Dragão, a antiga Serpente, o chamado Diabo ou Satanás" com o Império Romano e os perseguidores dos cristãos. Em outro artigo insistirei nesta interpretação. 

           Em mais outra oportunidade -e só em mais uma- o Novo Testamento pareceria identificar a Serpente com Satã. No Evangelho de São João é manifesta metáfora. Contrapõem-se os justos aos pecadores, a verdade à mentira, o caminho da salvação ao da morte eterna. Não se está ensinando doutrina a respeito nem da Serpente nem de Satãnás: "Vós sois do Diabo, vosso pai. E quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade porque nele não há verdade: quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira" (Jo 8,44).

            Passemos ao texto do Livro da Sabedoria. Foi muito invocado e discutido. Mas na realidade é indiscutível que não encerra nenhuma alusão à tentação do Paraíso, à morte física que teria decorrido do primeiro pecado,  senão que se trata do castigo dos ímpios na eternidade: "Não esperam o prêmio pela santidade, não crêem na recompensa das vidas puras... Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua própria eternidade. É por inveja do Satã que a morte entrou no mundo. Prová-la-ão quantos são do seu partido" (Sb 2,22-24).

            O texto do Livro da Sabedoria não se pode referir à morte física, que os ímpios conhecem e desejam para os justos (2,20). Evidentemente não a desejam para si próprios (2,6), proclamam exclusivamente o desfrute desta vida (2,1-20). Todo o texto e contexto (cf. também I,16,12s) mostra que o erro dos ímpios é acreditar que estão na vida, mas encontram a morte no outro mundo, enquanto que os justos morrendo para este mundo na realidade encontram a vida no outro (3,1-3).(Compare-se com Rm 5,12:  "Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo, e pelo pecado a morte". (A morte espiritual).

           
Não é nada provável que o Livro da Sabedoria aludisse ao capítulo 3 do Gênesis, porque o recurso ao passado não é do estilo do Antigo Testamento onde só em mais uma oportunidade se faz (Eclo 25,24). E mesmo que admitíssemos que há uma alusão ao Gênesis, seria mais provável a alusão à morte pelo fraticídio de Caim (Gn 4,1-6), como já defenderam alguns teólogos à luz da ciência (destaquemos Bois no século XIX, Gregg no começo do século XX, e recentemente Wright ).


            Além do mais esta referência a Satã ("Por inveja de Satã") é tão desvinculada de todo o Livro da Sabedoria, que é lícito suspeitar que seja um comentário introduzido posteriormente.

          O texto alude mais provavelmente às invejas entre deuses pagãos, não ao Paraíso. O autor -certamente um judeu helenizado, de Alexandria- batiza a inveja dos deuses substituindo-a pela inveja de Satã, porque os mitos de demônios naquela época, nos séculos II e I a.C., infestavam os livros apócrifos e a mentalidade judaica.

           ASMODEU. É o segundo demônio que aparece na Bíblia. Reflete-se também no Livro de Tobias o mito de relacionamento amoroso de mulheres da nossa Terra com deuses ou daímones pagãos. Manifestamente não é um livro histórico. Era um romance de "utilidade pública" e "religiosa". Os judeus, após o exílio, voltaram cheios de pânico pelas idéias mágicas e mitos dos primitivos povos pagãos.

            O autor sagrado não visa confirmar, nem sequer discutir, demonologia ou poderes reais ou imaginários da magia. Com essa ficção, falando do daímon  Asmodeu que por ciume teria matado sete maridos de Sara (Tb 3,8; 6,14s), apresentando Tobias que teria usado defumadores para expulsar o daímon (Tb 6,17s), descrevendo que o anjo Rafael acorrenta Asmodeu no deserto do Egito (Tb 8,3) etc., só visa reforçar a onipotência divina sobre toda e qualquer possível ou imaginária magia ou divindade pagã (Tb 6,14-22).

           Asmodeu é certamente emprestado do parsismo, a mitologia do Irã. Zaratustra, século VI antes de Cristo, fala freqüentemente de Aesma Deva, a divindade Ira ou Fúria, "a mais perigosa das divindades". Foi trasformado na Bíblia em "Asmodeu, o mais perigoso dos demônios" (Tb 3,8). Foi recebido em sincretismo com o anjo destrutor de uma época bíblica anterior (2Sm 24,16; Sb 18,25) pela semelhança de Aesma com a raiz hebraica schamad = perder, destruir. A idéia de deuses que se apaixonam de mulheres de nosso mundo existe em muitas mitologias e se perpetua no esoterismo das gerações posteriores, até hoje.

            Santo Agostinho, na sua época pouco sabendo do que hoje se chama Parapsicologia, apesar do seu talento extraordinário, chegará a dizer que negar a existência de demônios machos, os célebres íncubos, que com mulheres humanas geram "filhos dos demônios", seria notoriamente imprudente, pois é um fato muito bem estabelecido (?!).

            Sto. Tomás de Aquino acreditava que "um e mesmo demônio, fazendo de súcubo -fêmea- para o varão, recebe o sémen deste e o passa à mulher, fazendo-se íncubo para ela".

            Sto. Agostinho e Sto. Tomás, e quantos mais!, contraditoriamente descreviam os íncubos e súcubos como anjos rebeldes, demônios, com instintos e possibilidades sexuais, portanto com corpo! Absurdos semelhantes são muito repetidos por toda classe de ocultistas e espíritas... Hoje não faltará muito em aparecer alguém pretendendo fazer um bebê de proveta com sêmen de algum íncubo, e até algum clone do mesmíssimo Diabo! Loucura total.

            SATÃ. É provável que haja relação da palavra hebraica  Satã com a palavra árabe shaitan, que originalmente -ao  que opinam alguns linguistas árabes- significava serpente. Alguns povos vizinhos de Israel representavam seus ídolos sob forma de serpente. Satã, serpente, ídolo seriam sinônimos. A compreensão da  Serpente do Paraíso seria assim confirmada deste ponto de vista etimológico.

            A conceito de Satã nada tem a ver com o conceito de demônios, os anjos rebeldes, conceito clássico cristão. Com efeito: em 15 oportunidades aparece o termo Satã no Antigo Testamento. E seis vezes na forma verbal: satanizar. Nunca significa um ser sobrenatural mau:

           1) Com referência a Davi diziam os príncipes filisteus: "Não se volte contra nós no combate". De acordo com o original hebraico seria: "Não se torne Satã nosso no combate" (1 Sm 29,4). Claramente  Satã com o significado de pessoa inimiga.

            2) Davi aplica o termo  Satã aos homens que se opõem à vontade de Deus tentando o rei para que mate o benjaminita que o injuriou.  Satã significa a oposição humana a Deus. Pode entender-se como pessoas adversárias do próprio Davi, no sentido de tentadores: "Davi disse: 'Que tenho eu convosco filhos de Zeruia, para que vos torneis hoje meus adversários? Poderia ser alguém condenado à morte hoje em Israel?'" (2Sm 19,22).

           O mesmo significado no Novo Testamento quando Jesus diz a São Pedro: "Afasta-te de Mim, Satanás, porque tuas palavras são palavras humanas e não de acordo com Deus". Significado de tentação humana.

            3) Quando Salomão, após haver vencido duas batalhas afirma que "agora (...) não tenho Satã nem infortúnio", deve entender-se simplesmente por povo inimigo (1Rs 5,18).

            4) Pouco depois, já há dois Satãs para Salomão. A palavra Satã nesta oportunidade aparece três vezes. Satã nas três vezes designa povos inimigos. (1Rs 11,14.23.25).

            5) No primeiro Livro dos Reis (21,13) o termo Satã qualifica duas falsas testemunhas. Atitude em  Satã, isto é, acusadores inescrupulosos, inimigos.

             6) O Salmo 108 (ou 107),12-13 chama de  Satã os inimigos em geral e concretamente o acusador no julgamento.      

            7) Igualmente Satã é para o salmista, mais uma vez, um acusador no julgamento: "Designa um ímpio contra ele, que um Satã se poste à sua direita" (Sl 109,6).

            8) Depois do exílio, Satã personifica o acusador no tribunal divino. Iahweh "me fez ver Josué, sumo sacerdote, que estava de pé diante do Anjo de Iahweh, e  Satã que estava de pé à Sua direita para acusá-lo" (Zc 3,1s.). Imagina-se o Supremo Juiz como um rei terreno rodeado de sua corte. Dentre os servidores, um deles tem o cargo de Satã, de promotor. Aqui Satã é um cargo, não uma pessoa. Não é um nome próprio, é um título.

            9) O livro de Jó (1,6) refere que um dos Filhos de Deus se apresenta diante do trono de Iahweh. Filhos de Deus são os deuses, como filhos de Israel são os Israelitas. Esse Filho de Deus é Satã, que pede licença para satanizar a Jó. O nome comum Satã representa o cargo de acusador. E durante a narração dos acontecimentos, Satã representa a própria adversidade, a inimizade, a oposição. Mas nem por esse simbolismo se deixa de explicar expressamente que Satã é o próprio Jahweh que permite ou sanciona a adversidade.

           Em Jó 1,7; 2,2, Satã diz de si mesmo que vem de percorrer a Terra, essa mesma função que se considera própria de Iahweh, cujos sete olhos "Percorrem toda a Terra" (Zc 4,10b).

           No fim da descrição interminável de desgraças, o Livro de Jó tira a máscara de Satã. Continuamente Jó vai ensinando: "Pois sabei que foi Deus que me transtornou, envolvendo-me em suas redes (...) Ele bloqueou meu caminho e não tenho saída, encheu de trevas minhas veredas" (Jó 19,6-8); "Deus abateu-me o ânimo, Shaddai encheu-me de terror" (Jo 23,15). É Deus, "Shaddai que me amargura a alma" (27,1); "Instruir-vos-ei a cerca do poder de Deus, não vos ocultarei os desígnios de Shaddai" (11); "O terror de Deus caiu sobre mim" (31,23). Etc. E é clarissimo o que em todo o livro pretende-se encutir: "Jahweh o deu, Jahweh o tirou, bendito seja o nome de Jahweh" (1,20).    

           10) No Eclesiástico, emprega-se a palavra  Satã, como inimigo no sentido  do próprio instinto quando incita ao pecado: "Quando o ímpio maldiz  Satã, ele maldiz a si próprio" (Eclo 21,27).

            11) Em Habacuc (2,5),  Satã designa a peste. Grande inimiga...

            12) No primeiro livro dos Macabeus designa-se com o termo  Satã a "gente ímpia" e os "homens perversos" (1Mc, 1,34), no sentido de adversário maléfico. "Aquilo era uma emboscada para o lugar santo, um adversário maléfico para Israel constantemente" (1Mc 1,36).

            13) O termo  Satã é aplicado ao próprio Iahweh no Livro dos Números: é a oposição feita por Iahweh. O texto diz que o Anjo de Iahweh, isto é, o próprio Iahweh se interpõe em oposição no caminho de Balaão. "Sou Eu que vim contra ti em Satã" (Nm 22,32).

            14) Como em Jó e em Números, também nas Crônicas (1Cr 21,1) Satã significa a oposição "feita" (permitida) pelo próprio Deus. "Satã levantou-se contra Israel e induziu Daví a fazer o recenseamento de Israel".

            15) O Livro da Sabedoria foi escrito originariamente em grego, ignoramos qual seria a palavra escolhida pelo autor sagrado se escrevesse em hebraico. O autor utiliza a palavra grega Diábolos, termo com o qual os Setenta freqüentemente traduzem a palavra hebraica  Satã: "É por inveja de Satã que a morte entrou no mundo" (Sb 2,24). Como São Paulo (Rm 5,12) ensina que pelo pecado de Adão entrou a morte no mundo e o pecado pela tentação da serpente, surgiu o erro de identificar Satã com a serpente do Paraíso. Já estudamos o significado da Serpente e já analisamos o correspondente texto do Livro da Sabedoria.

            Conclusão. Portanto, na Bíblia Satã nunca designa um ser que possamos considerar um demônio no sentido, errado, tão difundido entre os cristãos  de um ser sobre-humano e perverso. Não significa um ser mas sim a própria inimizade com Deus, o que afasta o homem de Deus.

           A palavra  Satã, na sua forma verbal, stn em hebraico, aparece seis vezes no Antigo Testamento (Zc 3,1; Sl 38,21; Sl 71,13; Sl 109,4; Sl 109,29). Poderíamos traduzi-lo por "satanizar". Os Setenta geralmente traduzem o verbo stn por endiabállô em grego; caluniar nas línguas vernáculas (e o substantivo Satã os Setenta geralmente o traduzem por Diábolos, que significa caluniador).

           BELIAL. Belial (forma hebraica) ou Beliar (forma grega) aparece 27 vezes no Antigo Testamento e uma (2Cor 6,15) no Novo. Delas, 21 vezes forma a expressão "filhos de Belial", que eqüivale a chamar essas pessoas de "beliais", qualificativo. Igual expressão aparece em Qumran. Por exemplo: "Deus faz sair aos justos fora da massa dos filhos de Belial (...). Belial intenta derrubar os filhos da luz, os oprime e persegue" (IQS III,24). Contrapõem-se os justos aos injustos, os beliais ou filhos das trevas aos iluminados ou filhos da luz.

           Belial era uma divindade cananéia, o daíimon do mundo subterrâneo. No Antigo Testamento, em três (Sl 18,5; Sl 41,9 e 2Sm 22,5) das 27 oportunidades em que a palavra aparece significa esse mundo subterrâneo que a Bíblia utiliza no simbolismo religioso de lugar afastado de Iahweh.

            O conceito de Belial tinha tudo para representar a personificação do mal. Esta personificação ocupa um lugar de destaque nos manuscritos do mar Morto: "Deus criou a Belial, o anjo das trevas, o espírito do mal (...). O mundo e os homens estão sob Belial, a quem Deus e os justos odeiam, e ele odeia a Deus e aos justos" (IQS III, 24). "Deus marcou um final para a injustiça. Então Belial e seus anjos (isto é, todos os homens maus), serão submetidos a julgamento" (IQS IV, 18).

MASTEMAH. Era na mitologia de certos povos orientais, o "Príncipe dos espíritos" dos gigantes, ou "Chefe dos demônios". É às vezes chamado Satã. A palavra Mastemah tem a mesma raiz stn que a palavra Satanás. Também Mastemah significa inimizade.

            Mastemah aparece na Bíblia sem nenhuma relação com qualquer ser sobrenatural. No livro do profeta Oséias: "Por causa da gravidade de tua falta, grande é tua hostilidade (mastemah) (...), uma rede está estendida em todos os seus caminhos, há hostilidade (mastemah) na casa do seu Deus" (Os 9,7s.).

           O qualificativo ou ofício aplicado ao Chefe dos Demônios era sar hammastemah, conservado em alguns manuscritos etíopes, que significa "chefe da inimizade". Depois erradamente se abreviou para "chefe Mastemah", convertendo-se assim o qualificativo em nome próprio.

            No conjunto dos escritos de Qumran até agora encontrados aparece o nome de Satã quatro vezes. Não aparece Mastemah como nome próprio do Príncipe dos demônios, mas sim como qualificativo de Belial: Belial, "anjo da inimizade" (mastemah) [IQM (Regra da Guerra) XIII, 11; CD (Documento de Damasco) XVI, 5]; "projetos da inimizade" (mastemah) de Belial (IQM, XIII, 4); "domínio da inimizade" (mastemah) de Belial [IQS (Regra da Comunidade) III, 23].

        Como acabamos de ver, Satã, Mastema, Belial, Inimizade... (daí Incredulidade, Impiedade, Trevas, Ídolos, etc.) são sinônimos.

            Etimologicamente, Belial significa inútil. Esta é a tradução mais correta da frase do Deuteronômio: "Caso ousas dizer que, numa das cidades que Iahweh teu Deus te dará  para aí morar, filhos de Belial, procedentes do teu meio, seduziram os habitantes da sua cidade..." Ao pé da letra: "Homens sem utilidade", daí "vagabundos", "maus".

            Para mostrar este simbolismo religioso ver como exemplo a frase de São Paulo: "Não formeis parelha incoerente com os incrédulos. Que afinidade pode haver entre a justiça e a impiedade? Que comunhão pode haver entre a luz e as trevas? Que acordo entre Cristo e Beliar? Que relação entre o fiel e o incrédulo? Que há de comum entre o templo de Deus e os ídolos? Ora, nós é que somos o templo do Deus vivo (2 Cor 6, 14-16).          

O DIABO. O termo Satã, e satanizar, tão freqüente no Antigo Testamento, é substituído algumas vezes na tradução grega dos Setenta pelo termo Ho Diábolos (o Diabo),  e na forma verbal pelo termo endiabállô (ao pé da letra haveria que traduzi-lo por "endiabrar"). Diabo e Satã, ou Satanás, são sinônimos. O substantivo Satã ou Diabo, além das 15 vezes que aparece no Antigo Testamento e mais 6 vezes na forma verbal, no Novo Testamento Satanás aparece 37 vezes.

          Diabo, ou Diábolos, não procede de diáxo (= despedaçar) como afirma a Enciclopédia Britânica, senão de diabállô, isto é, bállô = arrojar, com o prefixo diá = através de: Expulsar através de.

          O verbo diabállô e o substantivo diábolos passaram a significar, substituindo o efeito pela causa, a ação e a pessoa que apresenta cargos com intento hostil, falsa ou caluniosamente (para "arrojar", "expulsar", "derrubar" alguém). Hostilidade, é este o significado que corresponde à palavra hebraica Satã. A escolha da palavra Diabo para substituir a palavra Satã na tradução dos Setenta é alusão à lenda da queda dos anjos rebeldes.

          Transformação do mito de guerra de deuses. Que cristão não aprendeu que antes da criação do mundo houve uma guerra de anjos rebeldes,  capitaneados por Lúcifer, sendo derrotados pelos anjos bons, capitaneados por São Miguel, e sendo então os rebeldes arrojados do Céu? Milton escreveu um drama impressionante no seu Paraíso Perdido. Tudo lenda.

           Na mitologia greco-romana, havia uma multidão de deuses que lutavam entre si. Inclusive o terrível Titã chamado Tifão lutou encarniçadamente contra seu pai e deus supremo, Júpiter. Expulso do Olimpo, a morada dos deuses, Tifão como todos os deuses rebeldes moram nos infernos, nos abismos, na escuridão. De lá partem para desencadear toda classe de males contra a humanidade.

           No judaísmo tardio circulavam lendas a esse respeito. A unidade psicológica dos judeus através dos séculos e superando tantas dificuldades, em parte deve-se às suas lendas. A lenda da queda dos anjos foi  introduzida pelo Livro de Noé, perdido. Este livro de lendas, para dar prestigio à coletânea, foi atribuído (recursos análogos são freqüentes) nada menos que ao Patriarca Noé. Na realidade é do século II a.C.

         Os judeus estavam rodeados de povos cujas mitologias falavam de guerras de deuses. Mas els pensaram: Como pode haver guerras de deuses, se só existe um? E o Livro de Noé transformou a guerra de deuses em guerra de anjos.

            Livro de Henoc. O mito da guerra dos deuses, diretamente emprestado dos cananeus, concretizou-se numa outra coletânea de lendas, o Livro de Henoc, descoberto na Etiópia em 1773. Consta de 108 capítulos, redigidos originariamente em aramaico, e talvez em parte em hebraico, mas na época do descobrimento só se encontraram cópias em etíope. Encontraram-se nada menos que 26 cópias, porque a Igreja etíope antiga considerava, erradamente, esse apócrifo como canônico, como pertencente à Bíblia. É conhecido como Primeiro Livro de Henoc  (1Hn) ou então como Henoc Etíope (Hn-et). Hoje já possuímos fragmentos em hebraico e mormente em aramaico, encontrados em Qumran, nas cavernas dos antigos essênios junto ao Mar Morto. Não tem unidade. É mais uma coleção de peças de diversas origens e antigüidades, compiladas entre o século II e primeiras décadas do século I a.C.

          Segundo os primeiros 36 capítulos do Livro de Henoc, 200 anjos guardiães, sob o comando de Semyasa decidiram engendrar filhos com as mulheres da nossa Terra. Cada guardião comportadamente tomou uma só esposa. Essas duzentas mulheres engendraram 3.000 gigantes (!).

            Segundo o Livro de Henoc, os anjos guardiães teriam ensinado aos terráqueos a fabricação de armas, a produção de cosméticos, a adivinhação pelos astros e a feitiçaria. Se ensinaram, é porque conheciam e tinham. Ensinaram o que eles tinham nos seus planetas. Ora, que sentido teriam esses conhecimentos no conceito tradicional de anjos?! Para os partidários dos OVNIs, esses guardiães seriam ETs que tinham por missão velar o comprimento da lei nos diversos planetas habitados.

            Mas aconteceu que os gigantes começaram a devorar homens... E os homens, aterrados, clamaram a Jahweh. O Altíssimo envia então o anjo Uriel para prevenir Noé do dilúvio com que planeja matar os gigantes; e para reprimir Semyasa, Azazel e demais anjos  guardiães, envia Miguel.

            Os guardiães --ou extraterestres- rebeldes, organizaram-se militarmente com um chefe para cada dezena. Mais adiante, nos capítulos 37-71, o Livro de Henoc vai apresentar repetidamente Satã como chefe dos guardiães perversos. Ou vários Satãs, vários chefes. Esta última parte do Livro de Henoc é já bem próxima da época de Cristo, certamente não mais distante Dele que os  primeiros decênios antes de Cristo.

           As milícias de guardiães e seus chefes foram vencidos pelas milícias de Miguel, e ficaram acorrentados em grutas subterrâneas durante 70 gerações. Setenta gerações em ocultismo significa por tempo incalculável. Expressamente se diz: "até o dia do Grande Julgamento (até o fim do mundo), quando serão lançados, junto com os homens maus, às masmorras de fogo". Um pouco de humorismo: Estes demônios não molestam mais!

          Os espíritos dos gigantes mortos no dilúvio, porém, segundo o Livro de Henoc, percorrem continuamente toda a Terra, fazendo mal aos homens.  Também estes demônios serão condenados, mas só no dia do Juízo Final. O Primeiro Livro de Henoc alcançou grande prestígio no judaísmo da época de Cristo. Era conhecido pelos escritores do Novo Testamento, e muitos Santos Padres e Escritores Eclesiásticos, erradamente o tinham como inspirado tal como os livros canônicos da Bíblia.

          Livro dos Segredos de Henoc. Recentemente apareceu outro livro com título parecido, o Livro dos Segredos de Henoc, 2º Livro de Henoc (2Hn), ou Henoc eslavo (Hn-esl) porque só numa versão eslava chegou completa até nós. Contra o que muitos acreditavam até há pouco tempo, foi demonstrado que é uma compilação de lendas feita na Idade Média. Desprezemos o absurdo de viagens cósmicas (ou extraterrestes) de Jesus-Cristo. Destaquemos unicamente a repetição da lenda de gigantes: Jesus teria encontrado guardiães, prisioneiros por terem mantido relações sexuais com mulheres da nossa Terra, induzidos por  Satanás.

          Livro dos Jubileus. Também outro apócrifo, o Livro dos Jubileus (Jb), fala dos gigantes. Jb começou a ser escrito no século II a. C., embora um pouco posterior ao principal de 1Hn, chegando a ser concluído talvez até no século II d. C. Apresenta a história bíblica do Gênesis e dos 12 primeiros capítulos do Êxodo segundo a mentalidade do judaísmo contemporâneo de Cristo e com as lendas judaicas ou midrashim. Deve seu nome ao fato de suas lendas serem apresentadas em períodos jubilares de 7 em 7 anos. O Livro dos Jubileus repete a lenda de que os anjos-guardiães, ou ETs, vieram ao nosso mundo a ensinar aos homens, mas logo se apaixonaram pelas mulheres da Terra...

            Quase todas as fontes desta lenda falam em relações sexuais com mulheres, não de varões da Terra com guardiães femininos. As viagens interplanetárias só seriam feitas por astronautas varões. O machismo, pelo visto, tão arraigado entre os judeus, teria bases cósmicas!

            Em Jb não se fala expressamente da origem dos daímones maus ou demônios atormentadores, mas claramente se dá por suposto em todo o livro que são os espíritos dos gigantes mortos, como afirmava o Primeiro Livro de Henoc. Noé suplica a Deus que reprima aos daímones, encerrando-os nas masmorras do castigo, mas "o príncipe dos espíritos", Mastema, consegue de Deus que uma décima parte dos demônios continue na terra pondo à prova os homens. Mais um pouco de humorismo: Só uma décima parte! De 3.000 gigantes a imensa maioria foi acorrentada nas masmorras até o fim do mundo. Alguns, quantos?, foram mortos, e só uma décima parte dos espíritos destes mortos...  Bom, a coisa não ficou tão grave!

            Queda de anjos? A origem lendária da queda de anjos rebeldes fica assim muito clara. Igualmente fica clara a origem da crença em demônios que atormentam os homens. Depois os cristãos simplificaram e concretizaram. Simplificaram a estritamente isso, guerra de anjos; e concretizaram dizendo que os anjos rebeldes foram capitaneados por Lúcifer, e os bons capitaneados por São Miguel. Tiraram todos os outros enfeites mitológicos.

          Mas nenhum texto bíblico pode com direito ser invocado. No início do Antigo Testamento, no Gênesis, alude-se ao mito dos pagãos a respeito de deuses que se apaixonaram de mulheres humanas: "Os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas, e tomaram como esposas todas as que mais lhes agradavam. Quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos, os Nefilim (= gigantes) habitavam sobre a Terra; estes homens foram os heróis dos tempos antigos" (Gn 6, 2.4).

           Na interpretação ocultista da Bíblia, os rabinos muito fantasiaram sobre as relações sexuais dos "filhos de Deus" com as mulheres humanas. Escrevem no Talmud: Já desde Adão, que "todos estes anos engendrou espíritos, demônios e fantasmas noturnos; pois se diz: 'quando Adão tinha 130 anos engendrou à sua imagem e semelhança', o que quer dizer que antes tinha engendrado seres que não eram à sua imagem e semelhança". Mais ainda, no Talmud chegam a sugerir também que guardiães femininos tiveram relações sexuais com varões humanos. Durante todo esse tempo, da mesma maneira que Adão fecundava guardiães femininos, também Eva teria engendrado de guardiães masculinos, dando-lhes abundante descendência (Rabba 24,6).

                A intenção desmitizante. A intenção de "batizar" a lenda aparece clara nesse texto bíblico. O Gênesis diz que os Nefilim, os gigantes, "estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos" (Gn 6,4). A Bíblia está claramente ensinando que os gigantes, gerados por anjos guardiões ou deuses pagãos,  astronautas vindos de outros planetas, tudo isso na realidade são lendas a respeito de meros homens, heróis miticamente engrandecidos.

           Igualmente a expressão Filhos de Deus significa originariamente deuses, como filhos dos homens simplesmente significa homens. Igualmente filhas dos homens significa mulheres. (Como posteriormente aquela expressão típica de Cristo: filho do homem; quer ressaltar que Ele, apesar da Sua divindade, não deixa de ser plenamente também homem).

          O Diabo ou Satã é um dos "filhos de Deus", um dos deuses de tantos que os pagãos cultuavam. Na Bíblia está escrito: "No dia em que os filhos de Deus vieram se apresentar a Iahweh, entre eles veio também  Satanás" (Jó 1,6). E logo depois: "Num outro dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar novamente a  Iahweh, entre eles veio também  Satanás" (Jó 2,1).

           A expressão "filhos de Deus" logo vai ser modificada, ressaltando a desmitização. A expressão original antiga num dos primeiros livros da Bíblia diz: "Quando o Altíssimo repartia as nações (...) fixou fronteiras para os povos, conforme o número dos filhos de Deus" (Dt 32,8). Significaria "conforme o número dos deuses". Esta expressão, "Filhos de Deus", é de fato a expressão original, conforme acaba de confirmar um fragmento de Qumran. Os Setenta, porém, mitigaram a expressão, traduzindo: "Conforme o número dos anjos de Deus". E o significado verdadeiro desse texto da Bíblia o dá bem a entender a edição hebraica dos massoretas, comum entre os antigos judeus: "Conforme o número dos filhos de Israel", isto é, simplesmente "segundo o número de pessoas".

            Na realidade é que a Bíblia, como Revelação doutrinal, vai combatendo o politeísmo pedagogicamente, aos poucos. Primeiro exalta a figura de Iahweh sobre os deuses ou "filhos de Deus", Iahweh é o "Deus dos deuses", "Levanta-se Iahweh no meio do conselho dos deuses", etc. Depois virão os profetas insistindo em que só há um único Deus.

            Embora sem deixar o estilo exagerado e metafórico, tipicamente oriental (Deus arrependendo-se?), bem claro fica na Bíblia que Iahweh não se "irritou"  contra os deuses e semi-deuses, guardiães, gigantes...: tudo isso não passa de mitos. Iahwéh se "irritou" contra os homens: "Meu espírito não se responsabilizará eternamente pelo homem, pois ele é carne (...). Iahweh arrependeu-se de ter feito o homem sobre a Terra (...). E disse Iahweh: 'Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei (...), porque me arrependo de tê-los feito´" (Gn 6,3,6s).

           O Livro dos Jubileus corrige com lógica 1Hn, mostrando, expressamente, que se os culpados foram os anjos guardiões e os gigantes, o dilúvio não poderia ser para castigar os homens. Se o termo "Filhos de Deus" não designasse seres humanos, da nossa Terra, não se compreenderia por quê Deus haveria de irritar-se com a humanidade.

                Mais ainda, o 2º Livro de Henoc diz bem claramente, entre tantas obscuridades e contradições, que o pecado foi responsabilidade exclusiva dos homens. Deus não amaldiçoou Satã nem nenhum outro dos daímones ou supostas divindades. Amaldiçoou somente a ignorância humana.

           Em outros dois textos da Bíblia aparece primeiro um reflexo impressionante da lenda dos filhos de Deus, anjos-guardiões, que gerariam gigantes. Impressionante, apesar de pretender "batizar" os guardiões identificando-os com anjos. Mas depois, em outro livro bíblico posterior, a desmitização do episódio, num texto paralelo, é claríssima.

            Primeiro: O reflexo da lenda. No Gênesis. Os guardiões tiveram que voltar a Sodoma e Gomorra para verificar se continuavam com os vícios verificados em viagens anteriores. Disse então Iahweh: "O grito contra Sodoma e Gomorra é muito grande! Seu pecado é muito grave! Vou descer e ver se eles fizeram ou não o que indica o grito que contra eles subiu até mim. Então ficarei sabendo" (Gn 18,20s). Subiram até Deus reclamações? Deus precisa descer à Terra para poder ver e só assim ficará sabendo? É impressionante até onde calou esse reflexo da lenda.

           E aparece de novo o intento de relacionamento sexual, desta vez por iniciativa dos homens desejando gerar gigantes: "Ao anoitecer, quando os dois anjos chegaram a Sodoma (...), Ló se levantou ao seu encontro e prostrou-se com a face por terra. Ele disse: 'Eu vos peço, meus senhores! Descei à casa de vosso servo para aí passares a noite e lavar-vos os pés; de manhã retomareis vosso caminho´ (...). Tanto insistiu que foram para sua casa e entraram (...) e comeram. Eles não tinham ainda deitado, quando a casa foi cercada pelos homens da cidade (...), todo o povo sem exceção (...). 'Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que deles abusemos´. Ló saiu à porta e, fechando-a detrás de si, disse-lhes: 'Suplico-vos, meus irmãos, não façais o mal! Ouvi: tenho duas filhas que ainda são virgens; eu vo-las trarei: fazei-lhes o que bem vos parecer, mas a estes homens nada façais´ (...). Arremessaram-se contra ele, Ló, e chegaram para arrombar a porta. Os homens, porém, (...) aos homens que estavam à entrada da casa, eles os feriram de cegueira (...). Disseram a Ló (...): 'Vamos destruir este lugar, pois é grande o grito que se ergueu contra eles diante de Iahweh, e Iahweh nos enviou para extermina-los´" (Gn 19, 1-13).    

            Segundo: A desmitização. Esta visita dos misteriosos anjos guardiões, extraterrestres, a Ló tem em outra oportunidade um paralelo absolutamente sem alusão ao mito, usando símbolos plenamente humanos: "Fazemos o caminho de Belém de Judá para o vale da montanha de Efraim, é de lá que eu sou. Fui a Belém de Judá e volto para casa (...). Tenho (...) pão e vinho para mim, para a tua serva e  para o jovem que acompanha o teu servo (...). 'Sê bem-vindo´, disse-lhe o velho (...). 'mas não passes a noite na praça´. Então ele o fez entrar na sua casa (...). Os viajantes lavaram os pés e depois comeram e beberam. Enquanto assim se reanimavam, eis que surgem vagabundos da cidade, fazendo tumulto ao redor da casa e, batendo na porta com golpes seguidos, diziam (...): 'Faz sair o homem que está  contigo, para que o conheçamos´ (sexualmente). Então o dono da casa saiu e lhes disse: 'Não, irmãos meus, rogo-vos, não pratiqueis um crime (...). Aqui está minha filha, que é virgem. Eu a entrego a vós. Abusai dela e fazei o que vos aprouver, mas não pratiqueis para com este homem uma tal infâmia´ (...). As tribos de Israel enviaram emissários a toda a tribo de Benjamim com a mensagem: 'Que crime é esse que se cometeu entre vós? Agora, pois, entregai-nos (...) esses bandidos (...) para que os executemos e extirpemos o mal do meio de Israel´" (Jz 19,18-25 e 20,12s).

           A intenção desmitizante é também muito antiga. No "evangelho hindu", o Bhagavad-Gita (que está em extensão e importância para o Mahabharata do poema épico dos Vedas como o Evangelho está para a Bíblia), transmitido por tradição oral anterior a 5.000 anos a.C., narra-se o combate entre os exércitos do bem e do mal. Krishna anima o vacilante príncipe Arjuna a lançar-se com o exército dos Pândavas contra os exércitos dos Kurus, chefiados por Duryôdhana, no campo de batalha de Kurukshetra.

            Krishna, encarnação do Espírito Supremo -bem poderíamos traduzi-lo por Cristo--. Arjuna e os Pândavas --ou São Miguel e seus anjos-- representam a humanidade como conjunto e como indivíduo, com seus desejos e tendências à perfeição e ao Sagrado. Enquanto que Duryôdhana e seus Kurus --Lúcifer com seus demônios--, são a outra parte do homem, as forças do mal tais como o ódio, a luxúria, o egoísmo... Kurukshetra é a própria natureza de cada homem e da humanidade dividida em dois reinos antagônicos --Cristo e anticristo--.

            A interpretação simbólica, desmitizante, que acabo de apresentar do Bhagavad-Gita foi e é  a mais comum entre os sábios da Índia.

            Poderia fazer idêntica explicação desmitizante, simbólica, de outras lutas entre o bem e o mal de outras mitologias do antigo Oriente, como a de Marduc e Tiamat na religião de Babilônia; de Ormazd e Ahrimam na antiga religião iraniana, etc.

          Este mito iraniano é particularmente interessante para a lenda judaico-cristã de luta de anjos bons e maus. Forma parte do Zervanismo, forma especial da religião de Zaratustra desenvolvida na região ocidental do Irã, nos centros de dispersão dos persas. As divindades subalternas más, esquadrões das trevas (anjos rebeldes) capitaneados por Ahriman (Lúcifer), atacam a fortaleza do Céu, onde reside o Deus Supremo, único verdadeiro Deus, Zervan. Ao encontro das divindades más saem os resplandecentes guerreiros (os anjos bons) capitaneados pela  divindade boa Ormazd (São Miguel). Zervan não intervém. Quando Ahriman está a ponto de chegar ao Céu fazendo recuar os exércitos de Ormazd, o campo de batalha se afunda nas trevas. Ahriman com seus exércitos ficarão acorrentado e retidos para sempre no abismo tenebroso. Novamente um pouco de humor: "Acorrentados e retidos para sempre", os demônios não molestam mais.

            A lenda da queda dos anjos se inspirou, imediata ou mediatamente, no Bhagavad-Gita, na mitologia babilônica, na mitologia iraniana...? Tudo é produto de uma mesma mentalidade oriental? A coincidência é manifesta.

          Alusões neotestamentárias. No Novo Testamento encontram-se duas alusões, e provavelmente só duas, à lenda dos anjos rebeldes. São Judas: "Os anjos que não conservaram o seu principado, mas abandonaram a sua morada, guardou-os presos em cadeias eternas, sob as trevas, para o juízo do Grande Dia" (Jd 6). E São Pedro: "Deus não poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os nos abismos tenebrosos do Tártaro, onde estão guardados à espera do Juízo" (2Pd 2,4). Alusões ao mito. Instrumento de linguagem para Revelar a justiça e no fim o perdão por Deus a quem se arrepender. Seria significativo em ambos textos, humoristicamente tomando-os ao pé da letra: os demônios não molestam mais, estão em cadeias eternas, guardados nos abismos tenebros.

            Quando Cristo (Mt 25,41) fala do fogo preparado para o Diabo e seus anjos, está também aludindo à lenda da queda? Talvez. Mas de acordo com outros textos neo-testamentários (1Cor 5,5; 1Tm 1,20; 1Tm 3,6) e extrabíblicos (1Hn 63,3; Documento de Damasco 8,2) em todo caso esta indicando meramente o castigo dos homens pecadores = servidores do Diabo.

            Igualmente: Segundo o Apocalipse os anjos e seu chefe Miguel, após rude combate, precipitaram sobre a Terra "o grande Dragão, a antiga Serpente, o chamado Diabo, ou Satanás, Sedutor" e seus anjos (Ap 12,7-11). Na realidade não se ratifica ou Revela a queda dos anjos, senão que se simboliza a vitória da Redenção contra as dificuldades dos cristãos. "O acusador dos nossos irmãos" teria algo que ver com o milenar conceito do Diabo, sendo que fica "dia e noite diante do nosso Deus"? (Ap 12,10). Todo o texto é enormemente alegórico e seria simplismo interpretá-lo como Revelação de uma real batalha e queda de anjos!

            Além do mais é já de longa data (Cassiodoro, 480-575) e é mais esclarecida, indiscutível à luz da ciência, outra interpretação: A "luta dos anjos" no Apocalipse refere-se ao presente e futuro do cristianismo, não a um longínquo passado, antes da criação da humanidade. O Apocalipse é "o livro da profecia", descreve o futuro do cristianismo. Como é possível que os "defensores dos demônios" não saibam nem sequer isto?

          Algo de análogo a frase de Cristo que vê Satã caindo do Céu como um raio (Lc 10,18): se é que alude a essa lenda, na realidade só esta querendo metaforicamente afirmar que os apóstolos estão vencendo o mal.

           Afinal qual teria sido o pecado dos anjos? Não posso me deter pormenorizadamente nas diversas concretizações que os Santos Padres, Escritores Eclesiásticos,  Doutores da Igreja e teólogos ao longo dos séculos aplicaram ao suposto pecado dos anjos. Como acabamos de ver, a tal queda dos anjos não pertence à Revelação, portanto não pertence à Teologia, é tema da ciência, embora deva interesar, e muito, aos teólogos mesmo que só fosse para colaborar com a Parapsicologia em tirar tanta superstição em favor de uma fé racional. Nenhuma das disquisições teológicas sobre o pecado dos anjos têm base. Nem posso me deter em profundidade, nas puras elucubrações falsamente filosóficas que fizeram para explicar como poderiam pecar apesar de estarem contemplando a "face de Deus" e portanto irresistivelmente atraídos pelo Sumo Bem. Somente apresento brevíssimas alusões, complementares do tema tratado.

            Atenágoras julgou que alguns anjos-potestades foram condenados porque não governaram bem os diversos elementos do mundo que lhes teriam sido confiados. Pressuposto manifestamente de origem pagã.

          São Irineu, Teruliano e São Gregório Niseno aceitam o absurdo de que os anjos teriam se deixado levar por ciúme com respeito à humanidade por ser amada por Deus. Fundamentam-se (?!) só no apócrifo Vida de Adão e Eva. Feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27), Adão seria mais glorioso do que os anjos! Deus teria pedido aos anjos que venerassem Adão. São Miguel e seus anjos teriam obedecido; Satã e os seus, não. Na realidade o Gênesis nem sugere nem dá enseio para tais conclusões.

          Taciano, Orígenes, São Gregório Nazianzeano, Santo Agostinho, São Gregório Magno..., embora elaborem mais seus pensamentos, não estão mais acertados em nenhum dos seis itens:

    1) O Eclesiástico afirma que Deus rejeita a soberba (Eclo 10,15). Por soberba, multidão de anjos não teria aceito que Deus se fizesse homem e não anjo. Ora, sua soberba lhes faria acreditar que eram mais inteligentes que Deus? Seriam os anjos tão pouco inteligentes, que nem perceberam a necessidade de redenção que tinham os homens pecadores?

    2) Ou teriam se negado a adorar a Cristo. Ora, acaso eles não queriam adorar a Deus?

    3) O pecado teria sido tentar Eva no paraíso. Ora, o sentido da lenda do paraíso é outro. O paraíso não se pode interpretar em sentido material. Voltaremos a isso em outra oportunidade, ao refutarmos o erro de atribuir as tentações aos demônios.

         Ao maior absurdo, influenciados pelos mitos pagãos que acabamos de ver, descem São Justino, São Clemente de Alexandria, São Cipriano, São Eusébio de Cesareia...: os anjos pecaram sexualmente com mulheres!

         Para Justino, como para Taciano e Teófilo de Antioquia, duas correntes bíblico-judaicas de demônios-potestades que não governaram bem o mundo, e demônios-anjos que pecaram com mulheres no tempo de Noé, se unem numa terceira interpretação: foram as potestades que pecaram com mulheres; menos Satã, "o príncipe dos demônios": este pecou quando, transformado em serpente, tentou a Eva no Paraíso. Outras correntes, entre elas a dos anjos rebeldes e caídos antes da criação do nosso mundo, foram ignoradas.

       Santo Agostinho, com sua genialidade, conseguiu amalgamar quase tudo! Agostinho modificou as fontes, violentou-as, adaptou-as, cortou o que não encaixava, acrescentou o que achava que faltava. A demonologia entrou em um verdadeiro leito de Procusto, aquele bandido que esticava os seus seqüestrados se eram demasiado pequenos para o leite de ferro, ou lhes cortava as pernas se não cabiam nele. Agostinho admite a possibilidade de que os anjos com um corpo tênue, depois da queda, pecaram com mulheres. Com Orígenes (ou com seu tradutor e prefaciante Rufino), Agostinho também identifica os demônios com os anjos que com seu chefe, Lúcifer, se rebelaram antes da criação do mundo. E estes mesmos anjos, rebeldes ou não, seriam as potestades que receberam o encargo de governar o mundo e todas as forças da natureza. Os  anjos rebeldes seriam os que atuam por trás dos ídolos. E eles mesmos seriam os que residem pelos "espaços celestes", e também nos "abismos tenebrosos do Tártaro" (2Pd 2,4). "Dominadores deste mundo de trevas" (Ef 6,12). Etc .

            E muitas outras interpretações ao longo dos séculos. Meras disquisições que pulularam nas Universidades Teológicas medievais, e que ainda vivem por todas partes.

DIABO NADA TEM A VER COM DEMÔNIOS. Como vimos no artigo anterior o termo demônio (ou algum equivalente exato em hebraico e/ou aramaico) não aparece nunca no original do Antigo Testamento. Portanto. Também não há nenhuma possessão demoníaca no Antigo Testamento. Em contrapartida, no Novo Testamento, os demônios aparecem 73 vezes. Por quê essa diferença? É um argumento importantíssimo para quando, em outra oportunidade, demonstremos que não há possessões demoníacas.

      No Novo Testamento, distingue-se entre o Diabo e demônios. Também o perceberam e distinguiram acertadamente alguns Santos Padres (São Justino, Tertuliano, São Clemente de Alexandria...), porque alcançaram alguns conhecimentos científicos do vocabulário e modo de pensar e de expressar-se na época em que se escreveu a Bíblia, e sobre a cultura judaica e a influencia de diversas culturas pagãs.

          O Diabo ou o Satanás são sempre apresentados no original da Bíblia no  masculino, no singular, com maiúscula a primeira letra, e com artigo determinado. Sinônimos de "o Satanás" , são o Maligno, o Inimigo, o Príncipe deste Mundo, o Pai da Mentira, etc.

          Para o termo "o Satanás", não podem ser considerados exceções os textos de Mt 4,10; 16,23; Lc 4,8; 20,3; Mc 8,33, porque em todos estes casos  Satanás aparece em vocativo e portanto não pode levar artigo. O Diabo só uma vez aparece sem o artigo determinado, mas também não pode ser considerado exceção. A tradução deve ser: "Não vos escolhi Eu aos doze? No entanto um de vós é um Diabo" (Jo 6,70), como o Diabo.

            Mc 3,23 seria a única exceção? Também não! A tradução tem que ser mesmo com artigo e adjetivo indeterminados para contrapor dois hipotéticos  Satanás: "Como pode um  Satanás expulsar outro  Satanás?"

                No Novo Testamento, só em duas oportunidades (Mt 25,41 e Ap 12,7-9) junto ao Diabo (o Dragão, no Apocalipse) são colocados "seus anjos". Eles são subordinados; mas seriam da mesma espécie? Tal conceito é contraditório com o conceito geral que se reflete na Bíblia: o Diabo é apresentado como único. Essa é a função do artigo determinado na gramática grega do Novo Testamento. "Seus anjos" nestas ocasiões refere-se simbolicamente aos homens maus, aos falsos profetas.

         DEMÔNIOS NADA TÊM A VER COM O DIABO. Não são da mesma espécie. Em contraposição ao Diabo, com referência aos demônios nunca se usa o artigo determinado. Não se refere a uma pessoa, nem em masculino nem em feminino. Se usada a palavra que traduzimos por demônio, sempre se coloca em neutro (coisa): daimónium. Usa-se também o plural do neutro: daimónia. Usam-se os sinônimos: espíritos impuros, espíritos imundos, etc. no singular ou no plural. Tudo completamente diferente de "o Diabo". Os demônios não são tentadores, não agem no âmbito moral. É o Diabo ou Satanás que relacionam com tentações e pecados.

          Em nenhuma parte da Bíblia se apresenta o Satã ou o Diabo atormentando possessos. Nunca se fala de possessões satânicas ou diabólicas. Quando "o  Satanás entrou em Judas" (Lc 22,3; Jo 13,27) simplesmente significa que é o pecado voluntário e culpável que entra; o mesmo no caso de Ananias cujo coração foi enchido por o  Satanás (At 5,3). O Diabo ou o Satã é, nestes casos, a personificação ou símbolo do pecado.

            A mesma identificação do pecado como sujeição ao Satã aparece em outros textos: "A fim de (...) voltarem das trevas à luz, e do poder do Satanás a Deus, e alcançarem pela fé em Mim a remissão dos pecados" (At 26,18). Contra Elimas, contra o pecado de magia, exalta-se São Paulo, e "repleto do Espírito Santo, fixou nele o olhar e disse: 'Ó filho do Diabo'" (At 13,8). É o pecado da superstição (At 19,18). Ou o pecado da crença de que a telepatia se deve a algum espírito do além (At 16,16). Ou o pecado da idolatria (At 19,26). Etc., etc.

            Alguns Santos Padres utilizarão a mesma comparação simbólico-cultural. Identificam o pecado e o Satanás: são obra do Diabo os enfeites femininos (Ireneu, Tertuliano, Cipriano), a astrologia e a adivinhação em geral (Tertuliano, Clemente de Alexandria) e inclusive certa filosofia (Clemente de Alexandria).

          São Pedro uma vez atribui ao Diabo o controle das doenças (At 10,38), mas o exerceria por meio dos demônios (Lc 10,17-19; 13,11-16; Mt 12,22-29; Mc 3,22-27). São os demônios, não o Diabo, os que causam certas doenças. Ou melhor, os demônios são doenças. Teremos que provar isto a fundo quando em outra oportunidades analisarmos as mal chamadas possessões demoníacas...

             Em poucas palavras: O Diabo e demônios são conceitos diferentes. Demônios relacionam-se com doenças. O Diabo relaciona-se com o pecado. Os demônios estão na ordem física, e o Diabo ou o Satã, na ordem moral.

             Conclusão. Em nenhuma parte da Bíblia se Revela a tal de guerra de anjos bons capitaneados por São Miguel, e anjos mãus capitaneados por Lúcifer. Não faz parte da Revelação de doutrina sobrenatural. Trata-se de cultura humana, de mitos e lendas humanas, absolutamente sem fundamento.

  LÚCIFER. Não é raro que a Bíblia aluda ou use como instrumento de linguagem a mitologia greco-romana e tantas outras mitologias, que influíram na cultura dos povos vizinhos e do próprio povo judeu, direta e principalmente através da mitologia cananéia. Metáfora. Instrumento de linguagem, como tal plenamente alheio à Revelação, para transmitir a verdadeira Revelação Doutrinal, Sobrenatural.

        O Salmo 82 chega até a apresentar Deus, o único Deus, contraditoriamente ameaçando outros deuses de fazê-los simplesmente mortais em castigo pelas suas injustiças. A ameaça divina meramente metafórica -é evidente- foi posteriormente materializada pelos judeus e cristãos, convertendo esses daímones ou deuses pagãos em demônios ou anjos rebeldes

         Como aludíamos no artigo anterior, Lúcifer, ou Luzbel, passou a ser  considerado na cultura cristã o chefe supremo de todos os demônios. Os anjos bons, capitaneados por São Miguel, haveriam derrotado todos os anjos maus, capitaneados por Lúcifer, expulsando-os do Céu.

         Após Orígenes, começou-se a identificar Lúcifer com Satanás ou O Diabo. O quê tem a ver Lúcifer com o Satanás, com "o príncipe dos demônios"? Tudo puras disquisições de teólogos sem olharem para a ciência.

          O falso fundamento. Na realidade, Isaías (14,12) não faz nada mais que comparar a queda dum tirano -o rei da Babilônia, sem dúvida Nabucodonosor ou Nabônides- à queda de Helél bem Shahar da mitologia fenícia. Na epopéia mítica de Râs-Shamra aparecem as divindades Estrela d'Alva e Aurora. Reuniam-se com os outros deuses na Montanha da Assembléia, como os deuses greco-romanos no Olimpo.

         Ora, Helel bem Shahar  ou a Estrela d´Alba, é o planeta Venus, a estrela mais brilhante ou Lúcifer (= Que leva a luz), a primeira estrela que aparece e a última que some. Queda de Lúcifer. A estrela mais brilhante. E transformou-se na queda de Satanás, e no príncipe dos anjos rebeldes.

         Na versão latina da Bíblia, a queda de Hélél bem Shahar converteu-se na queda de "Lúcifer, que aparece pela manhã", a Aurora. E outras traduções, como a Bíblia de Jerusalém, apresentam a versão etimológica: "Estrela d'Alva, filha da Aurora".

         São João, no Apocalipse, visa também ao significado etimológico: o próprio Cristo é chamado Lúcifer: "Eu sou o rebento da estirpe de Davi, a brilhante estrela da manhã" (Ap 22,16). Haveria que pôr Lúcifer.  Mas estando tão difundida a lenda da queda dos anjos, nenhum tradutor atreveu-se a colocar Lúcifer...

          E a Igreja repete essa aplicação de Lúcifer a Cristo no Exultet da Vigília Pascal, quando se acende o cirio representando a Jesus Ressuscitado. Haveria que dizer "Eis o verdadeiro Lúcifer", em vez de  "a verdadeira estrela da manhã".

          O "ANJO DE IAHWEH". E quê dizer de São Miguel?

         Na Bíblia consta, por exemplo: "Clamamos a Iahweh. Ele ouviu a nossa voz e enviou o Anjo que nos tirou do Egito" (Nm 20,16). O "Anjo de Iahweh" na Bíblia é sempre o próprio Deus. Em Êxodo (14,19), descrevem-se "o Anjo de Deus que ia adiante do exército de Israel (...), a Coluna de Nuvens (...) diante deles". Já em Números (17,7) esse Anjo de Deus e essa Coluna de Nuvens são a Glória de Iahweh, o próprio Deus: "Moisés e Aarão, ambos se dirigiram para a tenda da Reunião. Eis que a Nuvem a cobriu e a Glória de Iahweh apareceu".

         Só três nomes próprios de anjos aparecem na Bíblia: Miguel, Rafael e Gabriel. El significa o próprio Deus. Assim Rafael significa Deus cura. Por sua parte, Gabriel significa Deus revela. Foi um anjo que se apareceu a Nossa Senhora na Anunciação? Claro que não. Muito teremos que falar em outras oportunidades a respeito das Aparições... E não foi São Miguel, nada menos!, quem teria capitaneado os anjos bons conta Lúcifer e seus anjos. Miguel significa o poder de Deus.

          É que os judeus consideravam falta de respeito nomear Jahweh diretamente, por isso esses circunlóquios: o anjo de Iahweh, a nuvem de Iahweh, a sombra de Iahweh..., ou como acabamos de frisar, Miguel, Rafael, Gabriel ou a força, a cura, a comunicação de Iahweh.      

          O PRÓPRIO DEUS OU O SATANÁS. No começo do artigo vimos o daímon, o deus, da torrente lutando contra Jacó. E por fim abençoando-o (Gn 32,23-31). Esse demônio a Bíblia o transformou no próprio Deus. Vimos também afirmar-se expressamente que Satã era o próprio Iahweh: "Sou Eu (Iahweh) que vim contra ti em Satã" (Nm 22,32par).

          O mesmo acontece em outras oportunidades, algumas também já aludidas nos artigos anteriores. Por exemplo no Livro de Samuel se apresenta Iahweh inflamando em cólera contra Israel e incitando Davi a provocar a desobediência do povo fazendo recenseamento proibido, para que Deus tenha motivo de castigá-lo (2Sm 24,1). Quando, porém, mais tarde o Livro das Crônicas refere o mesmo episódio, substitui o nome de Iahweh pelo de Satã, como nome próprio (1Cor 21,1).

         A função do Satã no Livro de Jó é submeter à prova a paciência e fidelidade do santo a Deus. Outras provações ou dificuldades nos livros anteriores da Bíblia eram abertamente atribuídas diretamente a Deus: "Deus pôs Abraão à prova" (Gn 22,1). "Foi lá que Ele (Iahweh) os colocou à prova" (Ex 15,25; ver também 16,4). "Moisés disse ao povo: 'Não temais, Deus veio para vos provar'" (Ex 20,20). "O caminho que Iahweh teu Deus te fez percorrer durante quarenta anos no deserto, a fim de humilhar-te,  tentar-te e conhecer o que tinhas no coração (...), para te humilhar e te experimentar" (Dt 8,2-16); "Porque é Iahweh vosso Deus que vos experimenta" (Dt 13,4); "A ira de Iahweh se inflamou então contra Israel (...) a fim de (...) submeter Israel à prova" (Jz 2,22; cfr. 3,1-4). Etc.

          O povo judeu não suportava, por não compreendê-la, a idéia de que Iahweh pudesse causar (na realidade: permitir) qualquer acontecimento desagradável para seu povo. A figura de Satã, como personificação do mal, ofereceu a solução para o problema.

Nem por esse subterfúgio o Livro de Jó deixa de afirmar, bem no início da tragédia, que todas as desgraças que Satã inflige ao santo são com expresso consentimento do Altíssimo: "Iahweh disse a Satanás: pois bem, tudo o que ele possui está em teu poder, mas não estendas tua mão contra ele" (1,12).

          E nem por esse subterfúgio Jó deixa de atribuir suas desgraças a Deus: "Os terrores de Deus assediam-me" (6,4). E falando com Deus, pergunta: "Por que não afastaste de mim o olhar? (...). Por que me tomas por alvo?" (7,19s). E a lição que a Biblia quer incutir: "Iahweh o deu, Iahweh o tirou, bendito seja o nome de Iahweh" (1,20). É Deus que na sua Infinita sabedoria sabe por quê permite as provações e como na sua Divina Providência poderá tirar o bem.

         Na tradução grega dos Setenta chama-se ho Diábolos, o Diabo, ao Satã das Crônicas ou Paralelipônemos (1Cr 21,1). Igualmente, com referência ao Satã do Livro de Jó, igual faz-se com o Satã que no Livro do Profeta Zacarias é o acusador do sumo sacerdote Josué (Zc 3,1).

          Em conclusão: Deus quando permite provações, é representado por o Satã, o Diabo, personificação inexistente da realidade do mal.

          O PRÓPRIO DEUS OU UM DEMÔNIO. No Gênesis (12,17), "Iahweh feriu Faraó com grandes pragas e também sua casa, por causa de Sarai, a mulher de Abraão". Quando, porém, o "Apócrifo do Gênesis" encontrado em Qumran recita o mesmo fato, é um espírito mau, um demônio, que fere os egípcios provocando-lhes chagas purulentas para impedir-lhes relações sexuais;  e curam-se quando Abraão expulsa o mau espírito (Qumran, Genêsis Apócrifo 20, 16-24).

         Pode ser significativo, ao menos é curioso, que em sânscrito ou devanagari -"a escrita dos deuses"!- o mesmo radical Assur, que significa deus, espírito divino, luz divina, sopro divino, pode significar também demônio, espírito maligno, trevas, sopro demoníaco. Igualmente, vimos que em grego daímon tanto pode traduzir-se por divindade como por demônio.


          O PRÓPRIO DEUS OU DEUSES OU AS FORÇAS DA NATUREZA. Para os pagãos, as doenças e mortes são semeadas pelos daímones do meio ambiente, como o egípcio Set. Por exemplo a peste corresponde aos daímones ou deuses babilônicos Erra e Nergal, e ao Resef cananeu. Ou as doenças e a morte elas mesmas são deuses, como a deusa Zánatos = a morte.

          Essas funções dos  "daímones" ou esses deuses maus das mitologias pagãs, na Bíblia freqüentemente são atribuídas diretamente a Iahweh ou identificadas com Ele. "Se uma calamidade semear morte repentina, Ele ri do desespero dos inocentes (...). Se não for Ele, quem é então?" (Jó 9,23s.). "Sacrificar a Iahweh, nosso Deus, para que não nos ataque com a peste ou com a espada" (Ex 5,3). "Então Iahweh teve piedade da Terra e a peste deixou Israel" (2Sm 24,25). "Levo cravadas as flechas de Shadai e sinto absorver Seu veneno" (Jó 6,4; cf.14,18s).

          As flechas, a espada, e os animais ferozes são símbolos conhecidos do maléfico deus Astar, da mitologia síria. A respeito na Bíblia se suplica a Iahweh:  "Cercam-me touros numerosos, touros fortes de Basã me rodeiam; escancaram sua boca contra mim como leão que dilacera e ruge (...). Tu (Iahweh) me colocas na poeira da morte. Cercam-me cães numerosos (...) (Iahweh) salva minha vida da espada, meu único ser da pata do cão! Salva-me (Iahweh) da goela do leão, dos chifres do búfalo minha pobre vida!" (Sl 22,13-22).

          Atribuem-se a Deus as forças da natureza ou do próprio homem. É Iahweh quem castiga com a lepra a irmã de Moisés (Dt 24,9). Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras (Nm 21,6); Ele entrega Israel aos inimigos (Jz 2,14); "Eu lhe endurecerei o coração" (Ex 4,21).

         Essas forças da natureza e do homem, quando em si mesmas benfazejas ou trazem benefícios, podem também ser representadas por Anjos de Deus, que como já vimos representam o próprio Deus. Como também já vimos, os nomes destes Anjos benfazejos, mesmo quando se trate claramente  de forças da natureza ou do homem, vinculam-se à própria Providência Divina: Miguel = "Quem como Deus?". Gabriel = "Mensagem de Deus". Rafael = "Deus cura".

         Da mesma maneira as forças da natureza e do homem, quando em si mesmas ou imediatamente são prejudiciais ou acarretam males, podem ser também consideradas "mau espírito procedente de Iahweh" (1Sm 16,14). É o Anjo Devastador que arrasa Jerusalém (2Sm 24,16), destrói Sodoma (Gn 19,13), mata todos os primogênitos dos egípcios (Ex 12,12) e 185 mil assírios do exército de Senaquerib (2Rs 19,35; 2Cr 32,21), destrói Jerusalém como contemplou Ezequiel (Ez 9,1), ou vinga Suzana com a morte dos anciãos caluniadores (Dn 13,55).

          Em outros textos, porém, esses Anjos ou Espíritos Maus procedentes ou enviados por Deus são o próprio "mau espírito de Deus", ou "a ira de Iahweh" (2Sm 24,1). No texto paralelo do Livro das Crônicas a ira de Deus, o próprio Deus, é chamado Satã (1Cr 21,1).

          Hoje devemos distinguir entre a ação de Deus intervindo diretamente (milagre) por um lado, e por outro a ação da natureza que a Divina Providência, sem intervir, quer ou simplesmente permite (porque tudo colabora para o bem). A Bíblia, para inculcar que não existe mais Deus que Iahweh, nem mais Divina Providência que a do único Deus, não duvida em identificar Deus com os daímones, deuses bons e deuses maus, dos países vizinhos, mas na realidade a Bíblia está suprimindo todos esses demônios ou deuses. Um único Deus. Estas forças da natureza são atribuídas e até identificadas com Deus ou com os demônios, mas não passam disso: forças da natureza e humanas.

         MASTEMA. No Gênesis (22,1-2), Deus submete Abraão à prova pedindo-lhe que sacrifique seu filho Isaac. O verdadeiro significado o fornece o apócrifo  Livro dos Jubileus: quando conta o mesmo episódio, é Mastema quem sugere a Abraão o sacrifício.

         Mastema é um príncipe do céu que, como Satã no Livro de Jó, tem acesso ao trono do Altíssimo. Mastema desempenha o mesmo ofício e pronuncia praticamente as mesmas palavras que Satã no Livro de Jó: "Havia vozes no céu a respeito de Abraão; dizia-se que ele era fiel em tudo o que Deus lhe dizia (...). E o príncipe Mastema veio e disse em presença de Deus: 'Eis que Abraão ama seu filho Isaac (...). Diz-lhe, pois, que o ofereça em holocausto sobre o altar, e verás se cumpre esta palavra. Reconhecerás então se Te é fiel em tudo o que lhe provas´" (Jb XVII, 16).

         Igualmente: no Êxodo (4,24) se diz que é Iahweh quem assalta o in-circuncisso Moisés e intenta matá-lo ao regresso do Egito. No livro dos Jubileus (48,3), porém, é Mastema.

MONSTROS NA BÍBLIA. Também hoje qualquer pessoa culta, tratando de qualquer tema, poético e mesmo científico ou religioso, alude à mitologia grega ou latina. E nem por isso haveríamos de pensar que tal autor acredita na existência dos deuses Júpiter, Palas ou Posseidón... Da mesma maneira a Bíblia cita a mitologia dos pagãos. Os exílios do povo judaico o puseram em contato com os temores mágicos. Aos quais, por outra parte, são propensos. todos os primitivos, no tempo ou na mentalidade, e portanto também o povo israelita antigo. Após o exílio, na tentativa de evitar guerras ou de ser dominados, e na época de Cristo em que caíram sob o poder romano, os israelitas eram permeabilizados por culturas pagãs. Traziam-nas os judeus das diásporas nas suas visitas a Jerusalém. Também o comércio com os países vizinhos. Esses temores, convertidos em demônios, são citados na Bíblia.

         Isaías (13,21), por exemplo, no original, fala de que no deserto habitava Lilith e sua corte, uma divindade feminina dos babilônios, traduzida depois por Satanás e seres peludos, e depois identificados com demônios. A eles, segundo o Levítico (17,7) e 2 Crônicas (11,15), ofereciam-se sacrifícios como a divindades, embora divindades de segunda categoria. É evidente que o Profeta não está aceitando nem Lilith nem sua corte de grotescos daímones, demônios peludos, nem que habitem no deserto.

         Como não toma a sério Leviatã, o deus monstro do mar, nem Lannin, o deus dragão. Esses demônios-divindades da mitologia cananéia, citadas no Ras-Shamra, poema de Zaratustra, são meros símbolos com que Isaías (27,1) designa o Egito. O mesmo faz o salmista (Sl 74,13s). O monstro Leviatã  acreditavam que engolia o deus Sol quando acontecia o que hoje compreendemos como um eclipse. Os feiticeiros teriam poder de evocar o monstruoso Leviatã!

          No Livro de Daniel, quatro bestas monstruosas saídas do mar (Dn 7,1-8) representam quatro impérios sucessivos (Dn 7,13-27).

          No Apocalipse, já no fim do Novo Testamento, se retoma a imagem dos monstros. O Império Romano concretamente e em geral os homens que se opõem ao Cristianismo são representados pelo mesmo símbolo de Grande Serpente, monstros e bestas tais como  Rahab e Leviatã, oriundos de um caos primitivo. Realmente impressionante é a descrição joanina da aparição no céu do Grande Dragão (ou Grande Serpente em muitas traduções), "cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas, sua cauda arrastava um terço das estrelas do céu, lançando-as para a Terra" (Ap 12,3-4).

          Visão magnífica. Mas metáfora: o Império Romano e os inimigos do Cristianismo personificados pelo Diabo, Satã, o Sedutor do mundo inteiro, o Inimigo, o Acusador dos cristãos... diante de Deus! (Ap 12,7-10).

BEELZEBU. Usam-se três termos: Beelzebu, Baalzebub, e Beelzebul.

          Zaratustra ou Zoroastro, o fundador do Parsismo, religião do Irã, viveu no século VI a.C., ou antes. Zaratustra adverte sobre os cuidados que se devem ter após o corte de unhas e cabelos, pois uma vez cortados e separados do corpo, já pertencem ao Maligno, demônio mosca, e a outros devas ou espíritos maléficos, pelo fato mesmo de serem moradas da sujeira.

          No mesmo sentido, na mitologia cananéia, se adorava a Baal-Zebub, o deus do estrume, das moscas...

          Ora, devemos destacar o significado etimológico de Baal = o príncipe. E assim Beelzebu foi convertido pelos judeus em "príncipe dos demônios" (Mt 12,24 e Lc 11,15).

          Surgiu um jogo de palavras: Jesus usou conjuntamente o aramaico be'el (= senhor) e o hebraico zebul (= casa). Beelzebul seria o "senhor da casa". Assim, quando Cristo foi acusado pelos judeus de expulsar demônios pelo poder de Beelzebu, disse então Jesus: "Se chamaram Beelzebu ao senhor da casa, quanto mais chamarão assim aos seus familiares" (Mt 10,25). E acrescentou: "Uma casa cai sobre outra (...). Quando um homem forte (...) guarda sua moradia (...); voltarei para minha casa, de onde saí" (Lc 11,17.21.  24).

          Há outro jogo de palavras: Cristo teve presente também que Baal-Zebud era considerado o deus das moscas e que mora na sujeira: "Quando o espírito imundo sai do homem, perambula em lugares áridos (...). Voltarei para minha casa (...), chegando lá, encontra-a varrida e arrumada.  Diante disso, vai e toma   outros sete espíritos piores do que ele, os quais vêm habitar aí. E com isso a condição final daquele torna-se pior do que antes" (Lc 11,24-26).

          Aquele jogo de palavras com referência ao senhor da casa, foi percebido por muitos teólogos que conhecem hebraico. Aliás há muitos textos tanto no Antigo como no Novo Testamento e na literatura apócrifa e rabínica, como também na cultura supersticiosa secular, que apresentam os demônios habitando desertos, lugares áridos, ruínas de casas abandonadas e lugares imundos como esgotos e cemitérios. É a mitologia pagã que grassou entre os judeus e passou também aos cristãos.

        Mas geralmente escapou aos teólogos, entre os que lamentavelmente há poucos familiarizados com ciência, com Parapsicologia, esse outro jogo de palavras a respeito do deus da sujeira, da casa barrida. Como também lhes escapou outro detalhe muito importante, que deveremos explanar em outra oportunidade ao demonstrar os perigos do curandeirismo: Jesus sabia que quando Ele cura "endemoninhados", a cura é imediata e perfeita, mas quando os curandeiros, "vossos filhos", pretendem curar, sobrevêm "outros sete espíritos piores..., com isso a condição final daquele homem torna-se pior do que antes".

         Quando o próprio Cristo se faz eco dessas crenças populares, emprestadas do paganismo, evidentemente que não pretendia confirmar o mito.. Repitamos mais uma vez, até a saciedade: Cristo e a Bíblia não vieram a ensinar ciência senão Religião, usam a cultura da sua época como instrumento de linguagem para a Revelação da Doutrina Sobrenatural.

         ETEMMU. Demônios e Espíritos Imundos, Espíritos Impuros etc. no Novo Testamento identificam-se também com espíritos de mortos. Para os semitas mesopotâmicos, Etemmu são os espíritos dos mortos insepultos e privados dos sacrifícios prescritos. Pensavam que ficam vagando pela Terra e podem causar inúmeras doenças e outras desgraças aos homens.

         Para as especulações rabínicas, a identificação entre certos demônios com espíritos de mortos é, às vezes, manifesta. No Talmud e em outros comentários, os demônios são considerados entre outras coisas "seja como espíritos infortunados que foram deixados sem corpo quando, de repente, começou o Sábado, após o sexto dia da criação; seja como os construtores da Torre de Babel, assim transformados a modo de castigo"

         Este conceito espírita, ele também, não só diversos deuses de segunda categoria ou daímones e anjos rebeldes, etc, pode incluir-se na terminologia demonológica do Novo Testamento. Como explica Flávio Josefo, historiador judeu que escrevia no século I, expulsavam "os chamados demônios, com outras palavras, os espíritos dos homens malvados que penetram nos vivos".

          SEDUTORES E FALSOS PROFETAS. São Paulo (1Tm 4,1) fala de "espíritos sedutores e doutrinas demoníacas". Por todo o contexto escatológico, fala em sentido moral, refere-se a homens feitores da apostasia, falsos profetas, impostores.

         Esses falsos profetas são concebidos pelo Apocalipse como "espíritos impuros, como sapos", saindo "da boca do Dragão, da boca da Besta e da boca do falso Profeta (...). São com efeito, espíritos de demônios: fazem maravilhas e vão até os reis de toda a Terra" (Ap 16,13-14). Esses espíritos de demônios são na realidade homens impostores. Metáfora.                              

         São Justino frisa que "muitos demônios poderão arrepender-se e salvar-se. Se o Verbo de Deus Revelou (?!) que Satã e alguns outros anjos serão certamente castigadas ao fogo eterno, é porque Deus previu que esses poucos de fato não se arrependerão". Orígenes e numerosos outros Padres da Igreja também dizem que muitos demônios haverão de converter-se.

          No fundo estão dizendo, acertadamente, mais do que pretendiam dizer, erradamente. Referindo-se a demonios, anjos rebeldes, nada disso encaixa no conceito tradicional de demônios. Mas sendo esses demônios na realidade representação de pessoas, de falsos profetas, estão acertadíssimos porque a misericórdia de Deus sempre perdoa a quem se arrepende.

          E não é verdade que na Biblia se revele a condenação de Satã e seus anjos rebeldes. Na realidade, nada há de Revelação na Bíblia a respeito de guerra e queda de demônios, como temos visto nestes artigos. E veremos em outra oportunidade que não há absolutamente nenhum Dogma de Fé a respeito de demonologia. Nem pode haver, precisamente porque a demonologia não faz parte da Revelação.

CONCLUSÃO


AFINAL, O QUÊ SÃO OS DEMÔNIOS? ADERÊNCIA EXTRÍNSECA 

             A cultura demonológica bíblico-judaica-cristã é um mosaico de fontes e conceitos diferentes e até contraditórios. Mostra grande variedade nos conceitos como nas fontes que os inspiraram. Tudo o que a Bíblia, o judaísmo e a historia do Cristianismo dizem a este respeito mostra invariavelmente os traços de noções emprestadas de culturas estranhas à autêntica Revelação.

            Segundo otimamente escreve o prestigioso teólogo e grande parapsicólogo jesuíta Pe. Karl Rahner, a demonologia é "uma interpretação da experiência natural em torno de diversos (...) poderes (considerados) sobrenaturais. Tal doutrina (...) vai penetrando lentamente de fora da religião autenticamente revelada".

          Não pertence à Revelação nem, portanto, à Teologia. Trata-se de fatos, observáveis, do nosso mundo. Pertence à Parapsicologia dar a última palavra a respeito "dessa experiência natural em torno de diversos poderes" ou fatos incomuns e por isso misteriosos. Teremos que dar especial destaque às chamadas possessões demoníacas, às tentações, aos exorcismos...

Pe. Oscar G. Quevedo S.J.
o diabo por padre quevedo
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